"Se eu algum dia te aborrecer, vai ser com uma faca"
Lulu
“Não há Garbo. Não há Dietrich. Há apenas Louise Brooks”, disse nos anos 50 o historiador francês de cinema Henri Langlois, um dos fundadores da Cinemateca Francesa, na época em que Louise Brooks estava em Paris recebendo uma homenagem ao seu legado cinematográfico. Ela, que estava há anos no esquecimento, finalmente não só voltava ao spotlight, mas também enfim era reconhecida como uma verdadeira artista, e não só uma estrela bonita e famosa de antigamente.
Seus anos em Hollywood estavam num passado já distante; ironicamente, ela não foi imortalizada por seu trabalho na Califórnia ou em Nova York, mas sim no outro lado do oceano: na Europa, mais precisamente na Alemanha, fazendo A Caixa de Pandora e Diário de uma garota perdida para o austríaco G.W. Pabst. Ela definitivamente não era nostálgica, e quando ela se cansava de algo ou alguém, ela ia embora sem olhar para trás - homens, carreira, fama, amigos, família. Lá estava ela novamente na Europa, agora na França, após anos de reclusão e esquecimento, sendo um objeto de adoração por cinéfilos apaixonados dos mais variados perfis, porém todos unidos pelo mesmo fascínio. Louise estava mais velha, frágil e longe de seus anos de juventude. Alguns estavam um tanto decepcionados com uma velha senhora de cabelos compridos e grisalhos, amarrados, sem mais o famoso cabelo preto "bob" (estilo Chanel) que ela havia imortalizado no cinema mudo - e que havia lhe rendido o apelido de "a garota do capacete preto". Mas seu perfil inesquecível estava intacto, assim como sua sagacidade mordaz. Brooksie estava finalmente ressurgindo das cinzas...
Uma muito pequena Louise Brooks, durante sua infância no Kansas
Louise, Lulu, ou "Brooksie" nunca quis ser atriz ou estrela de cinema. Desde a infância, inspirada pela mãe, ela queria ser dançarina e se tornou uma, antes de sua fama no cinema. De qualquer maneira, Louise era de fato uma dançarina, não apenas profissionalmente, mas ela sabia dançar na cara da sociedade, dançar até o esquecimento e, por fim, dançar rumo à imortalidade. Através das luzes e sombras da tela prateada e além.
Mary Louise Brooks nasceu em 14 de novembro de 1906, sob o signo de Escorpião. Cada um tem sua personalidade e seu caminho de vida, mas é impossível não ver na trajetória de Louise um estilo visceral e autodestrutivo de viver a vida, típico de escorpianos, como veremos no decorrer de sua biografia. Para mais detalhes do mapa de Louise, aos interessados em astrologia, aqui o link do Astrotheme.com, com uma versão aproximada de seu mapa natal:
https://www.astrotheme.com/astrology/Louise_Brooks
Ironicamente, a excêntrica Lulu nasceu na cidade plana e comum de Cherryvale, no estado americano do Kansas. A cidade continua pequena até os dias de hoje, tendo o Censo de 2019 contabilizado pouco mais de 2 mil habitantes. Sobre sua cidade natal, ela descreveu como uma típica comunidade do meio oeste americano onde os habitantes "rezavam na sala de estar e praticavam incesto no celeiro" (nas palavras da sempre afiada Lulu).
Ao contrário de Dorothy Gale de O Mágico de Oz, também habitante das planícies do Kansas, Louise não era uma garota romântica e ingênua - o agora era sua única realidade e sempre seria (apesar de Alice no País das Maravilhas ter sido um de seus livros prediletos). Mas desde cedo havia nela muita energia e vitalidade, tornando-a uma menina travessa que adorava brincar e dar piruetas. Através da influência artística de sua mãe, essas piruetas em pouco tempo se transformariam em passos de dança.
Apesar de considerado um bom homem pelos seus amigos e conhecidos, Leonard era um homem comum e simplório, e Louise nunca se sentiu particularmente próxima dele. Sua mãe também não era a mais acessível das mulheres, mas ela tinha muito a ensinar através da arte, dos livros, da música e da dança, assuntos estes que fascinaram Brooks desde muito jovem.
Anos depois, sobre sua mãe, ela diria para seu irmão Theodore: "Que me importa se ela não era uma mãe e ligava menos para nós do que para um jacaré... Ela nos ensinou sobre amor à arte e ao riso".
Myra teve uma juventude difícil, pois seus pais não davam conta de cuidar dos seis filhos (Myra incluída) e coube a ela, a mais velha, cuidar dos seus cinco irmãos. Casada com Leonard, ela deu um ultimato: após perder tanto tempo cuidando de seus irmãos pestinhas, ela certamente não iria gastar suas energias tendo filhos ("pirralhos chorões"), e se os tivesse, os deixaria se virarem por conta própria. Ela teve quatro filhos no fim das contas, mas de fato nunca foi uma mãe convencional, ou nem mesmo uma mulher convencional, e não fazia a menor questão de esconder isso de quem quer que fosse.
Ainda uma jovem mulher, Myra via em escrever e tocar piano possíveis fugas daquele lar caótico e rústico do interior. Ela tinha grandes aspirações artísticas e mesmo já casada e com filhos, nutria o sonho de abandonar tudo e seguir uma carreira como artista. Naquele tempo, idos de 1910 e 1920, ela já dava palestras no seu clube de mulheres sobre o voto feminino, fazia resenhas de livros e tocava diversas peças clássicas no piano: seus filhos cresceram ouvindo Myra tocar Debussy, Ravel e Wagner. Ela não era uma mãe amorosa ou de expressões de afeto típicas, mas com certeza aquele não era um ambiente familiar hostil. Assim, Louise e seus irmãos cresceram inspirados pelos livros e pela música.
Refletindo sobre sua personalidade atrevida, Louise disse que nunca foi castigada por dizer a verdade dentro de sua casa. Ela cresceu numa família completamente fora dos padrões. Seus pais nunca repreenderam os filhos por sinceridade, por mais ferina que fosse. Se os filhos aprontavam ou passavam dos limites em suas brincadeiras, os pais mais faziam piada do que repreendiam, ou então estavam ocupados demais em seus afazeres para se importarem. Uma vez Louise foi confessar à sua mãe que havia quebrado a peça de porcelana favorita dela, e sua mãe, sem demonstrar qualquer reação, apenas disse: "Ah, querida, não me interrompa enquanto eu estou tentando memorizar Bach".
Para o bem e para o mal, seus pais a inspiraram muito durante seu crescimento. Em particular, Louise era fascinada pela dedicação de ambos pelos seus próprios interesses, acima de qualquer outra coisa. E mais ainda, seus pais demonstravam intenso prazer nos seus esforços criativos: sua mãe no piano e nos livros; seu pai nas leis e no violino. Assim, crescendo num lar onde não precisava mentir, dissimular, no qual podia fazer o que bem entendesse e como quisesse, anos depois ela se sentiria sufocada dentro do sistema castrador de Hollywood, e rejeitada pelas convenções sociais da época. Mas ela nunca abaixaria a cabeça para nada e nem ninguém, mesmo que isso custasse caro demais.
Nem tudo foi sonho e alegria, infelizmente. Aos nove anos, Louise foi vítima de abuso sexual por um homem de sua vizinhança. Ele a atraiu com doces, e dentro da casa molestou a menina. Muitos acreditam que esse trauma acompanhou Brooks por toda a vida, prejudicando sua vida pessoal, seus relacionamentos e sua carreira. Lulu depois diria que era incapaz de sentir amor verdadeiro, e que aquele homem devia ter tido muita influência no seu prazer sexual.
"Para mim, homens fáceis, bons e suaves não eram suficientes - tinha que ter algum elemento de dominação".
Para piorar, quando Louise finalmente contou para sua mãe o ocorrido, Myra sugeriu que a culpa era da filha, e não do homem.
Ela não queria ser uma estrela de cinema - ela queria ser uma dançarina. Até mesmo nos seus sonhos ela se via dançando. Tudo começaria de fato aos 10 anos de idade, com suas primeiras aulas de dança. Nessa época, já demostrando talento para a coisa, começou a fazer apresentações pagas em pequenos eventos sociais como dançarina. Seu pai achava aquela carreira de dança "uma bobagem", enquanto Myra não só incentivava como acompanhava nos mínimos detalhes, lidando com os chiliques da filha geniosa com absoluta calma profissional.
Já em Wichita, a adolescente Lulu já começava a dar os primeiros sinais de uma personalidade forte, sem papas na língua. Mesmo jovem, Lulu já demonstrava muito talento na dança, a ponto de achar sua professora da Wichita College of Music medíocre e com ares de superioridade. A professora de dança, Alice Campbell, demonstrava um verdadeiro desprezo pelo Kansas (e Louise diria que com exceção de Nebraska, quase todos os estados da nação partilhavam desse desdém). Myra insistia para que Louise tentasse ser mais simpática com as pessoas, mas Louise tinha um pavio curto e só sabia dizer o que lhe vinha à cabeça, por piores que fossem as consequências depois. Mas ela seria sempre assim, mesmo que seu temperamento eventualmente a transformasse num fiasco social. Miss Campbell terminou por expulsar Brooks da sua turma de dança, chamando a menina de "mimada, mal-humorada e insolente".
A mãe de Louise Brooks a levava para vários espetáculos de dança. Uma companhia que deixou a jovem Louise eletrificada foi a companhia de dança Denishawn, quando fizeram uma apresentação em Wichita. Incentivada pelos artistas e por sua mãe, Louise foi estudar dança em Nova York no verão de 1922, acompanhada por uma senhora conhecida da família chamada Alice Mills, com quem morou junto em NY já que era ainda muito nova. Naquele mesmo ano na Denishawn School of Dancing and Related Arts, Lulu se tornou uma dançarina profissional, aos 15 anos de idade, saindo logo em turnê pelo país até 1924. Louise participou de duas temporadas de apresentações com a companhia.
Brooksie tinha uma verdadeira admiração pela dançarina e coreógrafa Martha Graham, de quem se tornou amiga. Martha fazia parte da companhia Denishawn junto com Ruth St. Denis e Ted Shawn, e a influência de Graham para a dança moderna é vista hoje como tão impactante como Picasso foi na pintura, Frank Lloyd Wright na arquitetura, e Stravinsky na música.
"Eu aprendi a atuar ao ver Martha Graham dançar. E aprendi a dançar vendo Charlie Chaplin atuar."
Lulu
Louise e Ted Shawn estrelaram alguns espetáculos da companhia de dança. Com o tempo, os dois artistas começaram a se estranhar e ter confrontos constantes dentro do estúdio de dança, ao ponto de Shawn demitir Brooks por achá-la insolente demais e com supostos ares de superioridade. Novamente, Louise não aceitava ser mandada ou ter seus passos tolhidos, e não deixava barato. Ela fumava, bebia, ignorava repreendas e saía com homens sem ligar para o que os outros pensavam, chegando a ser expulsa do Hotel Algonquin de Nova York por "comportamento inadequado".
Quando mandou Lulu embora da companhia de dança, em 1924, disseram a ela:
"Você está sendo dispensada da companhia porque você quer a vida oferecida a você em uma bandeja de prata."
Aquela fala marcaria para sempre a memória de Louise. Na sua autobiografia abortada, anos depois, ela pensou em "The Silver Salver" (A Bandeja de Prata) como nome do capítulo final do livro, que no fim nunca foi publicado ou sequer terminado. É possível que o episódio não a tenha inibido, e sim estimulado mais ainda o seu prazer em afrontar os outros.
Ela tinha 17 anos e estava sozinha em Nova York. Mas não por muito tempo.
Ela aproveitou o período sabático para se divertir em Paris com sua amiga rica Barbara Bennett. Impulsivamente e sem grandes perspectivas de trabalho, Brooks tentou a sorte dançando Charleston em Londres, em boates e cabarés decadentes, sem grandes retornos. Acabou voltando para New York e se virando com dinheiro emprestado. Até que, enfim, novas oportunidades surgiram para ela.
A sorte de Louise era ter sempre amigos para ampará-la nos momentos mais difíceis. Sua amiga Barbara Bennett era irmã das atrizes Constance Bennett e Joan Bennett, elas três filhas de uma família rica e influente na alta roda e no meio artístico (o pai era o famoso ator Richard Bennett). Barbara era uma das poucas pessoas da alta sociedade que não julgava ou diminuía Louise, e apresentou para a amiga diversos homens ricos e importantes, que a cortejaram com prazer. Lulu também aproveitou essa época para começar a se vestir melhor, se portar com mais classe e se livrar de vez de seu sotaque caipira do Kansas, até conseguir falar um inglês neutro com dicção perfeita.
Foi através da amiga Barbara Bennett que Louise conseguiu um emprego como corista (chorus girl) no espetáculo da Broadway George White's Scandals, que logo seguiu em um trabalho como dançarina (seminua) em Ziegfeld Follies, uma das séries de shows de revista mais famosas e influentes da época. Mesmo com aparições pequenas, Brooksie chamava bastante atenção do público e conseguia trabalhos cada vez melhores e maior projeção, culminando então na proposta de contrato com estúdios de cinema.
Lulu recebeu duas grandes ofertas: uma da Metro Goldwyn Mayer e outra da Paramount Pictures. Walter Wanger, produtor na Paramount, se interessou e muito pela jovem dançarina, até se tornaram amantes. Por conta do relacionamento íntimo entre eles, Wanger disse para Louise optar pela MGM, pois pensava que indo para seu estúdio, a Paramount, todos pensariam que ela apenas subira na carreira por ter ido para a cama com ele.
Mesmo sendo aconselhada a aceitar a oferta da MGM, talvez por querer ser do contra, resolveu assinar um contrato de cinco anos com a Paramount em 1925. Ela não estava embarcando no cinema por ter sonhos com o estrelato ou coisa assim, ela só estava se jogando numa nova aventura e vendo no que dava (e claro, estava aceitando mais do que tudo pelo dinheiro).
Brooks filmou alguns dos seus primeiros filmes em Nova York, nos estúdio Astoria da Famous Player Lasky, que depois seria incorporada à Paramount Pictures. Em 1927 ela partiria para Los Angeles, Califórnia.
Não foi só a atenção de produtores que Louise recebeu durante sua passagem pelo Ziegfeld Follies. Charlie Chaplin, um de seus maiores ídolos, se encantou pela garota e os dois iniciaram um affair durante o verão daquele mesmo ano, 1925. Eles se conheceram num coquetel oferecido por Walter Wanger, e Chaplin estava em divulgações de seu novo filme, Em Busca do Ouro. Ele era casado na época com Lita Grey, mas é de conhecimento geral que Chaplin era um verdadeiro mulherengo. Quando o caso terminou e cada um foi para seu lado, Chaplin lhe enviou um cheque bem generoso. Louise nem sequer se deu ao trabalho de escrever uma nota agradecendo, anos depois dizendo: "maldita eu".
De qualquer forma, tanto Chaplin como Brooks anos depois só tinham coisas boas a dizer um do outro. Chaplin era fascinado pelas pernas de Lulu e por seus seios "do tamanho de peras", enquanto Lulu, depois da morte dele, diria para o crítico Kenneth Tynan: "minha mente volta 50 anos e continuo tentando definir aquele ser adorável de outro mundo".
Louise Brooks na vida real era a própria encarnação da "melindrosa" (flapper, em inglês): o tipo de garota libertina, dançante e de espírito livre daquela época. Sendo assim, não foi nenhum desafio para ela interpretar flappers no cinema. Ela reproduziu esse personagem em diversos filmes da sua carreira em Hollywood, assim como também o fizeram Clara Bow e Colleen Moore (que por sinal também tinha o cabelo chanel preto). Por conta do enorme sucesso de Louise e Colleen, o visual do cabelo "bob" virou febre até meados dos anos 1930. O corte de cabelo até hoje permanece muito requisitado, por conta do seu charme atemporal.
Tristemente, boa parte dos filmes de Louise Brooks em Hollywood são considerados perdidos até hoje.
Em 1928 o diretor Howard Hawks pegaria Louise emprestada para os estúdios da Fox, onde filmaria Uma Noiva em Cada Porto (A Girl in Every Port). O papel de uma mergulhadora de circo era pequeno, mas Louise roubou a cena em todas as suas sequências, demonstrando não só muito carisma como também exalando tensão sexual. Nas palavras do diretor: "Eu queria alguém diferente. Eu contratei Louise Brooks porque ela era bem segura de si. Muito analítica, muito feminina. Boa demais. Muito à frente de seu tempo, uma rebelde. Eu gosto de rebeldes!".
Seria sua participação marcante em A Girl in Every Port que chamaria a atenção do diretor austríaco G.W. Pabst na Alemanha, culminando no convite para estrelar A Caixa de Pandora.
Mas talvez o melhor filme americano de Louise Brooks seja Beggars of Life (Mendigos da Vida, dir. William A. Wellman, 1928). A própria Lulu considerava sua experiência cinematográfica favorita. Ela enfim se sentia entrosada com o diretor Wellman, seus costars (Wallace Beery e Richard Arlen) e sua própria personagem. O fato de estar filmando em locação, longe do estúdio, provavelmente a deixou mais entusiasmada também.
No entanto, por mais animada que estivesse com a experiência, aquele com certeza não foi um set tranquilo. Richard Arlen, seu parceiro de cena, estava com inveja de Brooks pois ela estava cada vez mais famosa e requisitada, enquanto ele já estava no ramo há mais tempo e se sentia injustiçado. Por ser amigo do marido de Louise na época, Eddie Sutherland, Richard reprovava os casos desinibidos da atriz durante as filmagens do filme. Um dia, bêbado, Arlen disse que Louise era "uma péssima atriz com os olhos juntos demais". E o diretor William Wellman exigiu tanto de Louise nas cenas de ação em cima de um trem em movimento a ponto dela quase morrer na filmagem de uma sequência. Wallace Beery interveio e disse que ela não precisava se expor a tanto perigo só por conta de uma cena, que poderia muito bem ser feita com um dublê.
Mas ruim mesmo foi quando Lulu dormiu com um dos dublês do filme e o mesmo homem falou para todo mundo que havia dormido com ela. Pior do que isso: na frente do todo mundo ele perguntou na cara de Louise se ela tinha sífilis, pois "era de conhecimento geral que ela dormia com um produtor fulano de tal que todos sabiam que tinha sífilis". Ela apenas desapareceu da cena, completamente envergonhada. Mas apesar da vergonha do momento, pouco depois ela dava de ombros e seguia a vida. E se pudesse (ou quisesse) revidar depois, ela certamente o faria. Ela sentia verdadeiro prazer em ser desagradável quando isso lhe convinha.
Sua fama era tanta que os homens ficavam bravos se ela recusava a sair ou dormir com eles. "Mas você dorme com todo mundo , por que não comigo?", perguntou um deles, surpreso. Ela só dormia com quem ela quisesse e ponto final.
Um dia, aborrecida e solitária, ela viu seu nome iluminado na frente de um cinema. Ela pensou consigo mesma que qualquer dia iria abandonar Hollywood para sempre. Aquele dia não estava tão distante
A escolha da atriz para encarnar Lulu em A Caixa de Pandora (tradução literal do alemão Die Büchse der Pandora, em inglês Pandora's Box) na Alemanha foi tão acirrada quanto foi Scarlett O'Hara para E O Vento Levou. Assim como Vivien Leigh, uma inglesa, interpretou uma jovem sulista nos tempos da Guerra Civil Americana, lá estava Louise Brooks, uma americana do Kansas, contratada para interpretar uma das personagens mais emblemáticas do teatro alemão, para o choque e horror de grande parte do público daquele país. Até parte do elenco do filme tinha desprezo por Louise. A sugestão inicial para Lulu foi Marlene Dietrich, mas Pabst achava Marlene "muito velha e muito óbvia" para o papel, para a fúria de Dietrich que já estava pronta para assinar o contrato do filme quando chegou o telegrama de Louise dos EUA aceitando o papel.
O austríaco G. W. Pabst era um homem erudito, e segundo Louise, ficava furioso com ela porque não podia se comunicar com a atriz de uma forma intelectual, já que nas palavras de Lulu, ela não era uma intelectual e não sabia nada de coisa alguma. Enquanto ele tentava promover a carreira artística da atriz e torná-la mais comportada, Lulu se esbaldava nas noites de Berlim, ainda livres do Nazismo de anos depois. Mas Louise Brooks era perfeita para aquele papel, exatamente por não ter técnicas de atuação ou afetações. Ela podia ser ela mesma e "não fazer nada", algo que ela já estava acostumada nos filmes bobos da Paramount. Mas nesse fazer nada, na verdade, ela fazia tudo. Mesmo que não tivesse consciência na época, Louise era uma das pioneiras no estilo de atuação mais real e natural possível. Diferente do estilo exagerado e caricato dos atores no teatro e no cinema mudo, Pabst nunca incentivou Louise a fazer expressões exageradas ou uso de maneirismos e gestos afetados. Sem necessidade de direções excessivas ou treinamento, ela fazia arte apenas com seu espírito livre e sua mera presença em cena. Pabst apenas dava direções curtas para ela, em poucas frases, e focava em uma única emoção por take.
Nas palavras de Lulu, verdadeira atuação não precisa estar estampada no rosto ou nos gestos físicos, mas na sua alma, no seu olhar e no seu corpo inteiro. Talvez o fato de ser uma dançarina com uma noção ampla de domínio do corpo tenha acrescentado muito nas suas performances. A personagem Lulu era mesmo uma dançarina no filme, e Brooks foi incentivada a dançar como nunca durante as gravações. O triunfo do filme foi retratar a vida mundana alemã: o desejo, a violência, a luxúria e os sentimentos mais primitivos da alma humana de forma realista, natural, sem enfeites ou glamour. Lulu é o eixo desse mundo de desejo e violência - nem culpada nem inocente, ela vive a sua vida despreocupadamente, sem se dar conta do poder de destruição que carrega dentro de si. Do seu olhar, do seu dançar, da sua sexualidade mortal. Louise Brooks, tão fatal quanto ingênua, soube passar tudo isso de forma convincente, sem premeditação ou forçando a barra para ser sexy.
Mas naquela época, Louise Brooks foi considerada uma atriz medíocre justamente porque os críticos e público em geral estavam acostumados com atores treinados, cheios de maneirismos exagerados e métodos pontuais, logo ela foi considerada ruim pois supostamente não estava fazendo nada, não estava "atuando de verdade". Lulu, por sua vez, não se considerava uma atriz estabelecida e assumia que não estava fazendo nada, ela estava interpretando ela mesma em cena, o que segundo ela era mais difícil ainda do que interpretar um personagem. E talvez essa tenha sido a maior realização artística e pessoal de Louise Brooks: ela sempre foi ela mesma e no fim essa foi a sua arte suprema, e ao mesmo tempo a sua maior tragédia.
Logo em seguida Louise fez Diário de Uma Garota Perdida (original Tagebuch einer Verlorenen, em inglês Diary of a Lost Girl), também dirigida por Pabst - título esse que combinava perfeitamente com Louise Brooks, considerada por muitos, e até por ela mesma, uma garota perdida, uma alma atormentada. Esse filme sofreu mais ainda do que A Caixa de Pandora com cortes e censura ao longo dos anos, se tornando um filme deveras retalhado. Hoje em dia, com restauração e cuidado devido, o filme já é distribuído como foi idealizado na época de sua produção.
A vida da moça perdida do filme sofre as mais diversas reviravoltas: de moça de família a garota perdida no reformatório, de prostituta a diretora do mesmo reformatório no qual tinha sido posta pela sua família hipócrita
Assim como A Caixa de Pandora, a história de Diário também era muito próxima da vida pessoal de Louise Brooks, já que o drama social seguia os passos de uma jovem estuprada que após ter o filho, se recusa a se casar com o abusador e termina num reformatório. Depois ela foge do lugar, e ao descobrir que sua criança havia morrido, sem perspectivas, vai parar num bordel e sobe socialmente ao se relacionar com um conde rico. Louise na vida real também era atormentada pelo seu passado assim como Thymian, a garota perdida do filme de Pabst: se tornou perdida logo quando foi abusada sexualmente por aquele homem do Kansas, e ainda foi considerada culpada pela situação toda. Um trauma que seguiu Brooks até o fim de sua vida e moldou a sua personalidade autodestrutiva.
Mas Louise nessa época era tão despreocupada e inconsciente das coisas que só décadas depois, ao rever os filmes com a atenção devida é que foi perceber a importância histórica, social e cultural daquelas películas. Ironicamente, a sua aura ingênua e irresponsável agregou e muito às suas interpretações.
O diretor G. W. Pabst estava apaixonado pela atriz, talvez de uma forma mais platônica e idealística do que emocional ou sexual. Os dois chegaram a ir para a cama, mas não foi nada muito além disso. De resto, Pabst gostava de Louise e acreditava no seu potencial, como se ela fosse sua protegida. Numa cena real épica em Paris, Louise recebeu um buquê de rosas do diretor. Louise, brava com um de seus interesses masculinos, simplesmente pegou o buquê e bateu com ele na cara do homem (o aristocrata Townsend Martin). Martin, com o rosto machucado e sangrando, tentou rir e não fazer muito do caso, mas Pabst ficou uma fera e levou Louise embora do restaurante.
Após rodar os dois filmes seguidamente, Pabst quase implorou para que Louise continuasse na Europa e fizesse carreira por lá, sob sua direção. Ele prometia fazer dela maior do que Garbo. Louise recusou; estava entediada com o velho continente e decidiu voltar para os Estados Unidos. Infelizmente, nada de próspero a aguardava por lá. Pabst havia dito que se Louise fosse embora e continuasse levando aquela vida de excessos e autodestruição, sem levar a sua carreira a sério, ela terminaria igual a Lulu do filme (não darei spoilers rs). Ela não quis ouvir e partiu. Era o começo do inferno da verdadeira Lulu.
De volta aos EUA, em Nova York, Louise recebeu prontamente um alerta da Paramount para que voltasse à Califórnia para retakes de The Canary Murder Case, o último filme dela no estúdio antes de ir para a Alemanha. Com o advento do som, agora eles queriam refilmar o longa adicionando diálogos sonoros. Louise disse apenas "eu odeio Hollywood, odeio a Califórnia e não vou voltar". Se o fato de ter saído da Paramount já tinha sido afronta o bastante, agora ela se recusava a terminar um filme inacabado. Isso causou a fúria de Schulberg, que espalhou o boato de que Brooks tinha uma voz péssima (um fato que destruía carreiras, naquele início de cinema falado). Era mentira, pois Brooks tinha uma voz maravilhosa com dicção perfeita, como podemos ouvir nos seus filmes falados e nas suas entrevistas. Mas a verdade não importava; o fato era que Louise Brooks agora estava na lista negra de Hollywood. Trabalhos ficariam cada vez mais escassos e ela se viu obrigada a aceitar papéis medíocres em produções B esquecíveis. Margaret Livingston foi contratada para dublar as falas de Louise em The Canary Murder Case, filme que contava com William Powell e Jean Arthur no elenco principal.
O último papel que poderia ter dado uma nova chance para Louise Brooks no cinema americano era em Inimigo Público, de 1931. O diretor William Wellman, apesar do choque de temperamentos com a atriz, admirava o seu talento e a sua personalidade. Mas Louise terminou por recusar o papel feminino de destaque no filme, pois ela estava farta de Hollywood e preferiu viajar para Nova York, ainda apaixonada por George Marshall que vivia lá. Sem Louise no elenco, James Cagney e Jean Harlow (no papel oferecido a ela) alcançaram o estrelato protagonizando aquele mesmo filme.
Pela ignorância geral dos americanos na época, os filmes de Louise feitos na Europa não fizeram sucesso e passaram quase em branco nos circuitos comerciais. Nem mesmo na Europa eles receberam seu devido valor na época de estreia. Na América, todo mundo agora só queria saber dos novos filmes falados, o que só piorou a distribuição dos filmes dela. Os filmes de Pabst foram vítimas de censura e retaliação, prejudicando as obras, sem falar que poucos entendiam aqueles filmes como obras de arte. E a atuação de Louise só foi vista como fraca e sem talento (para os padrões em voga).
Em 1932, aos 26 anos, Louise Brooks decretou falência.
Ela ainda estrelou dois filmes mainstreams em 1931: God's Gift to Women e It Pays to Advertise. Os críticos ignoraram seu trabalho em ambos os filmes. Voltou para Hollywood até disposta a assinar com a Columbia, mas se recusou a fazer um teste e (supostamente) também recusou ir para a cama com Harry Cohn, o executivo-chefe do estúdio. Com o flop do contrato, Louise foi fazer o filme B Windy Riley Goes Hollywood, por coincidência dirigido por outro renegado do cinema: Fatty Arbuckle, o comediante célebre do cinema mudo dos anos 1910 que teve sua carreira destruída ao ser acusado injustamente pela morte e suposto estupro da atriz Virginia Rappe (que no fim descobriu-se ter morrido provavelmente por uma cistite que resultou em peritonite). Arbuckle era inocente, nunca houve provas concretas contra o ator e ele foi legalmente absolvido, mas sua carreira foi destruída pelo escândalo midiático que marcou época nos anos 1920. Os famosos escândalos de Hollywood nos anos 20 como o de Arbuckle fomentaram eventualmente a criação do infame Código Hays de censura no cinema americano.
Sem muitas ofertas de emprego, Louise voltou a dançar em cabarés e bares para ganhar a vida, mas sem muito retorno. Aos poucos, seus amigos ricos e famosos foram se esquecendo ou se afastando dela, já que agora ela estava na lista negra da indústria. Em 1934, ela se casou aleatoriamente com o milionário Deering Davis, um de seus ricos admiradores. Mas cinco meses depois ela o abandonou, deixando apenas uma nota escrita. O divórcio oficial sairia só quatro anos depois. Lulu depois disse que nenhum dos seus casamentos foi por amor. E sobre nunca ter tido filhos, ela se considerava "seca", se chamando de "Barren Brooks" (pode ser traduzido como "Estéril Brooks" mas também "riachos secos", pois ao pé da letra "brook" é riacho ou pequeno curso de água).
Ela ainda fez alguns filmes irrelevantes como o western Empty Saddles e papéis não creditados em When You're in Love e King of Gamblers. Por fim, Brooks encerrou sua carreira de vez em 1937 com Overland Stage Raiders. Ela já não usava mais seu cabelo estilo bob e os tempos de flapper ficavam para trás, mas Louise continuava muito bonita aos 30 anos. Ela ficou fascinada por John Wayne, seu colega de cena que ainda era um iniciante. Ela previu que ele seria uma estrela logo mais, e ela estava certa. Já Brooksie, por sua vez, caminhava em direção ao limbo. O filme lhe rendeu duas semanas de trabalho e 300 dólares de salário pelo filme todo. No seu auge, ela fazia 750 dólares por semana na Paramount.
Ela vivia modestamente num pequeno apartamento em West Hollywood. Em 1938 ela se divorciou oficialmente do marido aleatório Deering Davis. O amigo Walter Wanger a alertou que se continuasse em Los Angeles, ela acabaria virando uma garota de programa por necessidade. As palavras de Pabst na Europa, sobre ela terminar como Lulu de A Caixa de Pandora (que no fim se prostitui para sobreviver), ressoavam na sua memória. Ela decidiu fazer as malas e voltar para a casa da sua família em Wichita, Kansas. Louise nunca mais voltaria para Hollywood.
Como era de se esperar, a recepção a Lulu pelos seus conterrâneos não foi nada convidativa. Se ainda fosse a sensação do momento, talvez estendessem um tapete vermelho (mesmo que a odiassem ou tivessem inveja secretamente). Mas os dias de glória se foram. Nas palavras da diva, a população medíocre de Wichita "não conseguia se decidir se a odiava por ter sido famosa longe dali ou agora por ser um fracasso no meio deles".
Ela passava os dias esfregando o chão da casa de sua família, brigando com os seus parentes, trancada no seu quarto lendo ou arranjando confusão, geralmente bêbada, nos arredores da cidade, indo parar na delegacia algumas vezes.
Seus anos sozinha, pobre e flopada em Nova York talvez tenham sido os mais difíceis de sua vida inteira. Para sobreviver, ela teve vários empregos diferentes: atriz de radionovela, colunista de fofoca e agente de publicidade. Entre 1946 e 1948, numa tentativa de ser "uma pessoa normal", Louise trabalhou como vendedora na loja Saks da Quinta Avenida de Nova York. Já envelhecida e sem o seu antigo corte de cabelo famoso, raramente era reconhecida. Ela caçoava dos clientes fingindo demência ou destilando indiferença. Se as mulheres esperavam que ela fechasse o zíper das roupas para elas, Lulu só ficava parada sem fazer nada de propósito. Mas ela não chegou a ser demitida, ela mesma pediu para sair quando já não suportava mais aquilo.
Segundo Brooks, ao trabalhar na Saks como vendedora, sua morte social entre os grã-finos foi decretada, e quase todos os seus antigos amigos ricos viraram a cara para ela. Como vingança e também tentativa de se reerguer das cinzas, Louise começou a escrever uma autobiografia reveladora, à qual ela pensou no nome Naked on My Goat ("Nua sobre a minha cabra", título tirado de um trecho de Fausto, de Goethe). Brooks passou anos escrevendo o livro, mas no fim das contas desistiu e jogou todo o manuscrito no incinerador. Tristemente, nunca saberemos toda a verdade sobre a vida íntima de Louise Brooks. Ela depois dedicou um espaço no epílogo de seu livro Lulu in Hollywood para comentar "por que nunca vou escrever as minhas memórias". Ela não queria simplesmente jogar tudo no ventilador sem uma verdade, um propósito intrínseco que significasse toda a sua trajetória. Nas palavras dela, ao se comparar com outros artistas que também não foram aprofundados por biógrafos em suas vidas íntimas:
"(...) Eu também não estou disposta a escrever a verdade sexual que faria a minha vida digna de ser lida. Não consigo desafivelar o "cinto da Bíblia" (cinto de castidade simbólico, resultado de sua criação conservadora no interior). É por isso que nunca escreverei minhas memórias."
Ao sair da Saks em 1948 até 1953 começou a trabalhar como "acompanhante" (escort girl) de homens ricos e influentes bem selecionados. Na sua quitinete, sozinha e pobre, Louise afundou na bebida e na obscuridade. A ideia do suicídio a rondava constantemente, dizendo ela que no auge de seu desespero flertava com pílulas para dormir. O único alento desse período foi a ajuda de um de seus amantes, o fundador da CBS William S. Paley, que passou a dar uma mesada para Louise conseguir se manter e desistir das tendências suicidas. Paley pagou o mesmo valor para Brooks todo mês até a morte dela em 1985.
Para a surpresa de muitos, Louise se converteu ao catolicismo em 1953, talvez numa tentativa de encontrar paz de espírito. Mas ela deixou a igreja 11 anos depois, em 1964. De qualquer forma, ela não era de todo avessa à religião, sendo um de seus desenhos em carvão o de uma figura religiosa que ela gostava muito. No fim da vida, porém, ela se questionava se realmente existia um Deus capaz de permitir que pessoas sofressem como ela padeceu nos piores momentos de seu enfisema.
Louise escreveu artigos e participou de diversos eventos na George Eastman, além de viajar para a Europa, onde recebeu homenagens e teve seu legado como atriz enaltecido como nunca. Apesar de ser uma reclusa estilo Garbo, Brooks concedeu algumas entrevistas raras para críticos e jornalistas. E mesmo tendo problemas sérios com álcool, Lulu manteve o foco em sua escrita e continuou produzindo, resultando no seu livro Lulu in Hollywood, publicado em 1982 e ainda disponível para venda (altamente recomendado).
Só para deixar claro: o livro não é uma biografia, e sim uma reunião de ensaios sobre cinema e lembranças pessoais da atriz sobre si mesma e amigos/conhecidos como W. C. Fields, G. W. Pabst, Humphrey Bogart antes da fama, Pepi Lederer, Lillian Gish e Greta Garbo. Foi um sucesso e continua sendo um livro conceituado no meio do cinema. Roger Ebert considerou "um dos poucos livros que podemos chamar de indispensáveis".
A veracidade de Louise era uma forma de coragem, ousadia e resistência contra qualquer tipo de repressão, independente de estar certa ou errada. Ela conseguiu ser autêntica e verdadeira, para o bem e para o mal, dentro de uma sociedade conservadora e arcaica. Incompreendida e pouco valorizada no seu tempo, ela não conseguiu se libertar em vida de certos traumas e ressentimentos, mas mesmo nas condições mais difíceis, seu amor pela arte e pela beleza a moveram adiante. Louise poderia ter parado no tempo e vivido apenas de sua glória passada, como uma Norma Desmond da vida, mas ela tomou posse da vontade de escrever e através de seu espírito ferino ressignificou não só o cinema clássico como também ressignificou a sua própria vida.
Inconsciente de seu próprio talento, ela acabou se tornando ainda mais autêntica e viva nas suas performances do cinema e nos nossos imaginários, pois essa mesma inconsciência no seu estilo de vida frenético fazia dela mais real, juvenil e livre de dissimulações. Do começo ao fim, ela sempre foi ela mesma e interpretou ela mesma, o que não fez dela uma paródia, pelo contrário: tornou ela uma artista. Ela fez da sua vida uma obra de arte: estranha, caótica, vivaz, fora da realidade, tão insatisfatória quanto a própria vida em si. E mesmo sem técnicas de atuação e com uma carreira irregular de poucos filmes, Louise Brooks é hoje considerada pelos estudiosos de cinema uma das maiores atrizes de sua geração. O ainda mais fascinante: ela é celebrada não por ter sido uma típica estrela de sucesso nos padrões de Hollywood, mas sim por ter sido uma rebelde desajustada que transformou a sua transgressão em arte.
Brooks permanece sendo uma mulher à frente do tempo, não necessariamente um exemplo a ser seguido, mas um espírito livre que nunca abriu mão da sua própria verdade e maneira de ser, por maiores que fossem as tentações. E por maiores que tenham sido os seus percalços, Lulu soube se reinventar e dar um novo sentido à sua vida e sua obra. Muitos de seus trabalhos continuam perdidos, mas felizmente os seus melhores trabalhos no cinema mudo permanecem disponíveis e atemporais em muitos aspectos. Por mais que hoje tenhamos efeitos especiais, sons e cores, o cinema mudo ainda tem muito a nos ensinar em matérias de imagem, emoção e movimento - isto é, a própria essência vital do cinema em sua forma bruta.
Para concluir, penso que nada melhor do que o próprio epitáfio de Louise Brooks, criado pela mesma alguns anos antes de seu falecimento. Lê-se:
"Eu nunca dei nada sem desejar ter guardado, e nunca guardei nada sem desejar ter dado"
Lulu
Epílogo: Curiosidades de Brooksie
Ela adorava animais, e teve vários cães e gatos durante a vida.
Seus hobbies, além da escrita e leitura, eram a pintura e o desenho.
Sua atriz favorita era Margaret Sullavan.
Não sabemos se era seu autor favorito de todos, mas Louise era obcecada pelo francês Marcel Proust, autor de Em busca do tempo perdido.
Sua vida inspirou um romance de ficção misturado com realidade chamado The Chaperone, escrito por Laura Moriarty e publicado em 2012.
Seus filmes favoritos eram Sinfonia de Paris (1951), O Mágico de Oz (1939) e Pigmalião (1938).
Liza Minnelli, vencedora do Oscar por seu trabalho no musical Cabaret (1972, dir. Bob Fosse), disse que quando perguntou ao seu pai Vincente Minnelli sobre qual ícone dos anos 20-30 ela deveria buscar inspiração, ele disse para ela estudar tudo possível sobre Louise Brooks (e não Marlene Dietrich, como ela havia pensado primeiro)
O filme A Social Celebrity (1926), estrelado por Brooks, ainda existia na década de 1950, quando Louise o reassistiu na George Eastman House em 1957. Mas tragicamente a cópia da George Eastman se deteriorou, e a outra cópia existente na Cinemateca Francesa foi perdida num incêndio em 1959. Assim, não há cópias conhecidas desse filme e hoje ele é considerado perdido.
Filmes de Lulu que até hoje são considerados perdidos e sem nenhum rastro: Evening Clothes (1927), Rolled Stockings (1927) e The City Gone Wild (1927). Esse último quase foi salvo pelo preservador de filmes David Shepard no final dos anos 60 mas a Paramount foi mais rápida e simplesmente descartou o filme junto com vários outros já estragados.
Felizmente, alguns trechos de seus filmes perdidos foram encontrados desde os anos 90 até então: trechos de The American Venus foram encontrados, em especial um trecho em Technicolor com Louise, algo raríssimo; em 2016 um pedaço de 23 minutos de Now We're in the Air foi encontrado num arquivo nacional em Praga, República Tcheca, e hoje já restaurado pode ser assistido parcialmente online; por fim, uma cópia incompleta de Just Another Blonde também ainda existe nos arquivos da UCLA.
Todos os outros filmes citados e ilustrados no post existem e estão disponíveis online ou em mídia física!
Em 2021 estamos completando 115 anos do nascimento de Lulu. Que o legado de Brooksie permaneça vivo agora e sempre!
Um raro autógrafo com dedicatória divertida de Lulu. Adoro sua caligrafia afiada e charmosa
Amor,
Pedro Dantas
Novembro 2021
Além de Lulu in Hollywood, a maior fonte deste texto foi a biografia de Barry Paris lançada em 1989. Infelizmente, nenhum dos dois livros ainda foi traduzido para o português.