sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Anjo Mau (1976): Desencavando a novela original resgatada pelo Globoplay (com spoilers)

ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS




 Era um sonho desde os meus 10 anos assistir a essa novela, na época em que eu comecei a me interessar por teledramaturgia brasileira, em especial pelas novelas antigas e raras da nossa televisão. Então eu nem pensava que um dia conseguiria ver uma novela em preto e branco na íntegra, sabendo que a maioria se perdeu em incêndios, que ninguém além da Globo possui as fitas e que o Canal Viva tem ressalvas em reprisar novelas dos anos 70, e em preto e branco dizem que nem se cogita. Naquela época nem todo mundo tinha televisão e gravar programas de TV ainda não era comum como hoje. 

Enfim, em 2017 eu tive uma prévia com os compactos de Irmãos Coragem e Selva de Pedra, ambas de Janete Clair e lançadas em DVD pela Globo Marcas, e que muito apreciei. As novelas setentistas já vinham ganhando espaço com reprises de Pai Herói, Dancin' Days, e com as excelentes O Bem Amado e Pecado Capital adicionadas ao streaming. Há um mês, o Globoplay surpreendeu com a inclusão da versão original em preto e branco de Anjo Mau, de 1976, escrita por Cassiano Gabus Mendes, mesmo autor de sucessos como Beto Rockfeller (que revolucionou a TV com seu estilo moderno de novela), LocomotivasTi Ti Ti, Brega e Chique, Que Rei Sou Eu?, entre outras. Já vi e gosto muito do remake de Anjo Mau, escrito pela talentosa Maria Adelaide Amaral e com Glória Pires no papel principal. Agora que eu concluí a versão original, trago minhas impressões pessoais da mesma, para que a produção venha mais à luz e interesse não só os saudosistas mas também novas gerações de espectadores. Quero não só comparar com o remake, mas além disso ressaltar os méritos e particularidades da primeira versão.


Nice nas duas versões: 1976 e 1997

Antes de mais nada, quem vai se propor a ver uma novela antiga, em especial dos anos 70, precisa ter em mente que a dinâmica da TV era completamente diferente de hoje em dia. As tramas eram mais lentas, singelas, com diálogos bem corriqueiros e despretensiosos, ou até rebuscados e com muitas referências classe A. Não espere super ganchos e reviravoltas mirabolantes como em uma série americana do Netflix, por exemplo, pois vai se frustrar. Algumas vinhetas chegam a ser bizarras e dão um pouco de medo, como aquele carrinho de bebê da abertura e a Susana Vieira surgindo lentamente de um fundo negro ao som da música Papaya, de Urszula Dudziak. A abertura do original, com um estilo divertido que lembra história em quadrinhos e fotonovela, dá de mil a zero na abertura do remake, que tem sua beleza, mas mais parece um comercial do Avon.


Imagens usadas na abertura, que também ilustraram o LP nacional da novela


Vai ter coisas antiquadas, hoje certamente passíveis de problematização dos tribunais da internet, mas novamente: nos agradando ou não a nível pessoal, precisamos contextualizar com a realidade da época retratada e analisar tendo esse contexto em mente, para não depreciar ou desvalorizar de forma gratuita e superficial uma obra clássica.

Cassiano Gabus Mendes, o autor de Anjo Mau, foi um profissional versátil: diretor, ator, roteirista, sonoplasta, produtor e contrarregra. Foi o primeiro diretor artístico da TV brasileira, ainda no início da primeira emissora brasileira, a Rede Tupi

Não se assustem se as fitas dos primeiros capítulos derem umas osciladas tipo de VHS ou coisas do tipo. No geral eu achei a qualidade da restauração das fitas muito boa - não esperem um 4K de resolução, obviamente. Considerando a idade da novela, a imagem está muito satisfatória. Aliás é uma benção a novela ter sobrevivido, pois devido a um grave incêndio ocorrido em 1976 na antiga sede da Globo no Jardim Botânico (muito antes do Projac), boa parte do acervo anterior a 76 se perdeu ou sobreviveu parcialmente. Anjo Mau e A Escrava Isaura foram algumas novelas daquele ano que sobreviveram na íntegra. Por conta do incêndio, as gravações da novela tiveram que ser realocadas em outros estúdios provisoriamente. Como a novela tinha sido reprisada no TV Mulher em 1981 e compactada em uma hora e meia no Festival 15 Anos um ano antes, eu tinha esperança de que a obra tivesse sobrevivido bem, e a entrada no Globoplay apenas confirmou a minha suspeita. 




Eu tive medo de achar Anjo Mau enfadonha, mas felizmente isso não aconteceu. Bom, pelo menos não para mim, pois li que algumas pessoas não foram conquistadas e acharam parada. O público de hoje não está acostumado com a condução devagar das novelas mais antigas, o que pode ter sido a razão do fracasso da exibição de Pai Herói no Canal Viva em 2016. Mas depende de cada obra, pois Dancin' Days até teve uma repercussão ok quando foi ao ar no canal pago. E eu creio que Pecado Capital, por exemplo, tem um ritmo mais ágil e uma história mais bem amarrada do que Pai Herói, por exemplo, que eu até apreciei mas achei meio várzea de modo geral. Uma outra novela que gostei muito de assistir em DVD e acho que envelheceu bem e merecia uma reexibição na TV é A Sucessora (por sinal o trabalho favorito de Susana Vieira, a protagonista de Anjo Mau). 


Aguardando a entrada dessa ótima novela de Manoel Carlos no streaming ou TV a cabo na íntegra. Eu comentei dela no meu texto sobre novelas e cinema (e da semelhança polêmica da história com o romance e filme de Hitchcock Rebecca)

Vou começar então falando de Susana Vieira. Esqueçam a Susana Vieira que estamos acostumados em notícia de fofoca, pagando mico ao vivo ou fazendo personagens histriônicos em novelas recentes ruins. Piadas à parte, houve um tempo em que Susana Vieira era uma atriz séria e muito competente. Foi assim até pelo menos a novela Por Amor (ou indo mais longe, Senhora do Destino, mas ali a Renata Sorrah engoliu tudo e sem a Nazaré não sobra muito). Enfim, se vocês querem ver a Susy atuando mesmo de verdade, com uma aura mais séria e contida, vejam novelas como Anjo Mau e A Sucessora


O elenco feminino de Anjo Mau reunido: Ilka Soares, Neila Tavares, Pepita Rodrigues, Susana Vieira, Kátia D'Angelo e Vera Gimenez


Inicialmente, o papel da ambiciosa babá Nice foi pensado para Regina Duarte, grande estrela da TV naquela época e então a "namoradinha do Brasil". Seria uma possibilidade de sair do estereótipo de mocinha romântica e ingênua que ela estava acostumada a interpretar em novelas como Minha Doce NamoradaSelva de Pedra e Carinhoso, mas ela resolveu recusar e aceitar uma quebra de expectativa ainda maior: na peça Réveillon, de 1975 e escrita por Flávio Márcio, interpretando uma prostituta. 


Duarte fazendo cosplay de Marilyn Monroe na peça Réveillon. A direção foi do ator Paulo José. Polemizou e quebrou com a imagem de namoradinha do Brasil, algo definitivo quando a atriz protagonizou o seriado feminista Malu Mulher, em 1979


O papel da anti-heroína Nice então caiu nas mãos de Susana Vieira, como um presente pelo seu bom desempenho na novela Escalada (de Lauro César Muniz, 1975). A atriz já estava na ativa desde os anos 60, mas em papéis pequenos ou coadjuvantes. Com Anjo Mau teve sua primeira protagonista, e foi muito feliz na sua performance como a ambiciosa babá que não mede esforços para conseguir o que quer: a ascensão social através de seu grande amor, o herdeiro Rodrigo Medeiros (José Wilker, com quem Susana fez par várias vezes subsequentemente). 


Sim, além de ver Susana Vieira jovem atuando de verdade e low profile, ainda vemos José Wilker na flor da idade, com cabelo e ainda fazendo galã romântico. Coisas que o público mais jovem realmente não está acostumado... 


O encontro de ricos e pobres é comum no folhetim, mas era um tema caro para Cassiano Gabus. Em suas histórias, geralmente comédias com pitadas de drama, vemos com frequência o embate entre pobres e ricos, principalmente o pobre como um intruso infiltrado na alta roda, por vontade própria e/ou acaso do destino, geralmente visando a ascensão social através de uma teia de mentiras - foi assim com Beto Rockfeller na novela homônima, Nice em Anjo Mau, Marcela em Plumas e Paetês, Doca em Meu Bem, Meu Mal, só para listar alguns e salvos os contextos de cada um. Mestre na sátira de costumes, Cassiano Gabus tinha um olhar perspicaz e amargo sobre a nossa sociedade fútil, vazia e hipócrita. Ele seguia o folhetim clássico, adicionando sua marca registrada: a comédia elegante.


Luís Gustavo como Beto Rockfeller, o moço pobre e descolado que se passava por rico e pegava geral. As novelas anteriores a Beto R. eram muito fantasiosas e românticas, fora da realidade moderna

Apesar do autor de Beto Rockfeller ter sido Bráulio Pedroso (de O Rebu, O Cafona e Feijão Maravilha), Cassiano era o diretor artístico e teve a ideia inicial da trama. O estilo moderno de diálogos corriqueiros, pessoas comuns com qualidades e falhas, referências do momento e as músicas da moda emplacaram um novo estilo de fazer televisão no final dos anos 60, influenciando tudo o que veio depois. Depois de uma longa estada na Tupi e uma breve passagem pela TV Cultura, Anjo Mau era a estreia do autor na Globo. A novela estreou em 2 de fevereiro de 1976, fechando em 173 capítulos, com o seu final sendo exibido em 24 de agosto daquele mesmo ano.


Dentro da casa de uma família rica, Nice faz de tudo para conquistar o homem rico por quem é apaixonada. A personagem é um ótimo exemplo de anti-heroína, capaz de atitudes boas e más de acordo com as situações enfrentadas na vida. Parte do público torcia pela felicidade de Nice, mas outra parte a odiava e achava um desaforo que a empregada não ficasse no seu lugar, quieta e subserviente 

Nice foi uma das primeiras anti-heroínas da TV. Ela era mesmo ambiciosa, imperfeita, debochada e sem escrúpulos para alcançar os seus objetivos. Glória Pires fez muito bem a sua personagem em 1997, aliás um de seus melhores trabalhos, mas Maria Adelaide deu uma boa suavizada na personagem e jogou muito da vilania na personagem Paula. Há quem ache Paula mais "anjo mau" do que a própria Nice do remake. 

No original, Nice é a protagonista e ao mesmo tempo a vilã principal do enredo ao tumultuar a vida dos personagens em seu próprio benefício. Apesar do título maniqueísta e dúbio da novela, a personagem é muito humana e passível de identificação com seus dilemas e ambições. 


Pobre e mulher, o destino de uma jovem como Nice é se casar com um namorado suburbano e tocar a vida com um emprego medíocre e/ou bela, recatada e do lar. Nice decide se casar, mas com um homem rico 



Para quem já conhece o remake de 1997, a base da sinopse é a mesma. Nice é uma moça suburbana que não para em nenhum emprego e vive insatisfeita com sua vida humilde e com as suas possibilidades medíocres de futuro: casar com alguém do bairro e continuar sendo pobre, com um emprego mixo ou como dona de casa. Ela é cortejada pelo mecânico Júlio (Zanoni Ferrite), mas nunca lhe dá bola. Diferente do remake, Júlio mantém só uma paixão platônica por Nice e acaba namorando Teresa (Neila Tavares) e os dois viram um casal de tapas e beijos. Júlio pouco se intromete na vida de Nice no decorrer da história.


O talentoso ator Zanoni Ferrite infelizmente nos deixou cedo em 1978, aos 32 anos, falecendo após um acidente de trânsito em São Paulo. Neila Tavares faleceu há pouco tempo, em junho desse ano aos 73 anos.


Supostamente órfã, Nice foi adotada pelo casal humilde Alzira e Augusto. Alzira (Vanda Lacerda), é uma mulher durona e sofrida, muito rígida com Nice desde sempre e esconde um segredo do passado que justifica a sua frieza para com a filha. Já seu pai Augusto (José Lewgoy) é mais próximo da filha e é através dele que Nice consegue um emprego como babá na mansão da rica família Medeiros, onde Augusto trabalha como motorista. 


José Lewgoy como Augusto, o pai adotivo de Nice. O personagem é muito conservador e antiquado, sempre brigando com os filhos por conta de suas visões retrógradas. Chauffeur, ele tinha um bordão: a vida é rápida! Lewgoy participou também do remake, dessa vez como o chefe da família Medeiros, rebatizado lá como Eduardo


Maldades à parte, Nice fica apegada ao bebê Edinho como se fosse o seu próprio filho. Aliás, o bebê aparece muito mais no original do que no remake, eu acho


Nice fica deslumbrada com o luxo da mansão, com as roupas chiques de sua patroa, a neurótica e divertida Stela (Pepita Rodrigues), que logo fica encantada com a nova e eficiente babá. Mas Nice é conquistada mesmo pelo charme de um dos irmãos de Stela, Rodrigo (Wilker). Decidida a subir na vida, ela começa a maquinar para conquistar Rodrigo, custe o que custar. 

Uma diferença importante no cenário: essa primeira versão da novela se passa no Rio de Janeiro. Logo, a gente percebe um estilo mais descontraído e solar nos costumes e nas locações. A piscina é um dos cenários mais movimentados da mansão, Nice chega até a ficar de maiô com o bebê na piscina! Enquanto que no remake de 97, passado em São Paulo, a piscina mal aparecia e todo mundo era mais sisudo, apressado e bem coberto (típico de paulistanos rs). Isso tudo é curioso porque o autor Cassiano Gabus era paulista e muitas de suas novelas posteriores se passaram em São Paulo, mas acredito que por estar iniciando na Globo, ele teve que escrever suas primeiras histórias na casa ali mesmo pelo Rio. Maria Adelaide Amaral foi colaboradora de Cassiano em Meu Bem, Meu Mal e trabalhou muito perto do autor. Quando reescreveu a história, decidiu trazê-la à capital paulista. Foi uma ideia boa, mas eu não achei SP tão marcante no contexto do remake, como foi em Meu Bem, Meu Mal ou A Próxima Vítima, por exemplo (a última ela co-escreveu como colaboradora de Sílvio de Abreu em 1995).


Que as tretas comecem...

Rodrigo começa a novela noivo da fútil Paula (Vera Gimenez, mãe da Lulu Super Pop), sem saber que esta está perdidamente apaixonada pelo seu irmão, o mulherengo bon vivant Ricardo (Luís Gustavo, em sua estreia na Globo após anos na TV Tupi). De início, Nice estimula intrigas entre Rodrigo, Paula e Ricardo e consegue fazer com que Stela flagre o casal de amantes se beijando às escondidas. No original o baque é bem mais sóbrio: Paula conta diretamente a Rodrigo que gosta de Ricardo e eles terminam tudo. Rodrigo fica abalado e começa então a tocar pela primeira de muitas vezes o grande clássico da novela: Meu mundo e nada mais, de Guilherme Arantes, estrondoso sucesso daquela época e hino do personagem taciturno e atormentado. Mas e o patriarca dos Medeiros? Bom, Edmundo (Helmício Fróes) morre de saúde mesmo, sem nenhuma intriga envolvida. Stela passa muitos capítulos de luto, mas nunca se interessa pela firma. Ricardo passa finalmente a se interessar pelos negócios, mas começa a se endividar no jogo. Rodrigo, só pensando em Paula, deixa de ir trabalhar e só curte a própria fossa.


Paula e Ricardo flagrados juntos. O boa-vida não consegue se manter fiel a Paula e se interessa pela charmosa Lígia (Hortência Tayer)

Uma grande diferença entre o original e o remake é que a personagem Paula na primeira versão não é bem uma vilã. Na verdade, ela não é a grande rival de Nice como aconteceu no remake de 97, no qual Alessandra Negrini pintou e bordou com suas vilanias e safadezas. Já no original, Paula fica às voltas com Ricardo quase toda a novela e participa mais de outros conflitos. 


O pai de Paula, Rui (Jaime Barcelos), é uma mistura de Napoleão com Al Capone. Um casamento de Paula com um herdeiro dos Medeiros muito interessa para seus negócios, pois ele está à beira da falência. Apesar de vilão, o personagem rende momentos divertidos. Nenhum personagem da novela é só bom ou só mau


Um dos admiradores de Paula é o trapaceiro Fernando (Reinaldo Gonzaga), que é apaixonado por ela e faz de tudo para conquistá-la. Fernando trabalha para Rui, o pai ganancioso e tirânico de Paula. Rui e Fernando armam trapaças em jogos de pôquer para liquidar Ricardo em dívidas e eventualmente tomar as ações do herdeiro com o fim de assumirem parte na empresa dos Medeiros. Rui une o útil ao agradável e quer Ricardo falido e casado com sua filha Paula para fechar seus planos. 


Nice e Paula não se gostam e têm bons embates às vezes, mas não passa disso. Num dos barracos mais marcantes, Paula diz que Nice é só uma "empregadinha" e que "o lugar dela é na cozinha, no tanque". Nice revida dizendo que ela não "trocou de irmão" e se recusa a chamá-la de senhora


Enfim, Paula é só uma moça superficial, neurótica e ciumenta que causa cenas incontáveis em público com Ricardo e os casinhos dele, em especial a refinada Lígia (Hortência Tayer), dona de uma galeria de arte. 


Hortência Tayer foi demitida na reta final da novela e sua personagem Lígia, a muito paciente namorada de Ricardo, é apenas mencionada nos diálogos (algo muito parecido com o sumiço de Luma e Ísis de Oliveira em Meu Bem Meu Mal anos depois). A atriz também foi jornalista, modelo e apresentadora. Sumiu da vida pública e aparentemente faleceu em 2018 com 74 anos


A mãe de Paula, Odete (Rosita Thomaz Lopes), passa a ser chantageada por Fernando, que possui uma antiga carta de amor de um ex-amante de Odete, ameaçando entregá-la para Rui. Em troca da carta, Fernando exige que Odete arruíne o noivado de Paula com Ricardo. A dondoca, não querendo perder a boa vida com Rui, decide apresentar Lígia a Ricardo. Depois a intriga da carta termina, mas o mal já está feito: Ricardo se apaixona por Lígia e Paula fica desesperada. Paula e Lígia vivem discutindo em público por causa de Ricardo boa parte da novela, e ele saindo com ambas.

No remake, a esposa de Rui passa a se chamar Teresa (Luiza Brunet tentando ser atriz), com uma trama mais melodramática: ela esconde do marido o fato de ser filha de uma mulher negra (Cida, Léa Garcia), um drama parecido com o filme Imitação da Vida

Aproveitando o gancho, a representatividade da época, como esperado, deixa muito a desejar. Só há uma personagem negra, por exemplo: uma empregada da cozinha da mansão que só aparece de costas, ninguém sabe o nome e quase nunca fala. Triste...


Rodrigo não se conforma com a traição do irmão e de Paula. Ele se consola nos braços de Nice

Sem Paula no caminho, Rodrigo começa a se interessar por Nice, como um deboche contra a hipocrisia da alta sociedade e para afrontar os seus conhecidos (especialmente Paula, a ex-noiva elitista e arrogante). Rodrigo e Nice começam a sair escondidos pela noite e ela recebe presentes caros dele. A Nice do original é bem humilde mesmo, sem nem saber se maquiar até Stela ensinar para a moça um tutorial de make. E Nice nunca beijou na boca mesmo com mais de 20 anos de idade (algo muito OK e nada de mais, diga-se de passagem). Rodrigo é galinha e comete traquinagens dignas de um adolescente, mas nunca chega a dormir com Nice, pois ele diz ter muito respeito por ela. Eles se beijam pela primeira vez por volta do capítulo 20. A boate 706 no Leblon serviu de cenário para as noitadas dos personagens em muitos capítulos.


A babá num momento Cinderela depois de um banho de loja e maquiagem. Mas logo ao voltar da noitada, volta a ser empregada de uniforme. Com Rodrigo e bem vestida nos lugares chiques, ninguém desconfia que ela é uma babá e por enquanto está a salvo do preconceito social...

A atriz Henriqueta Brieba viveu a Vovó Carolina, uma senhora de idade que serve de alívio cômico com suas maluquices e falas sem sentido. Ela é uma das poucas que aprova e torce por Nice para conquistar Rodrigo, pois na visão dela "ele precisa de uma babá". No remake a personagem foi eliminada


Além da Vovó Carolina, outro aliado de Nice na mansão é o misterioso jardineiro Onias (Átila Iório). Na verdade, ele é o pai biológico de Nice que reaparece depois de muitos anos. No início da novela ele ronda Alzira, que na verdade é a mãe biológica de Nice mas esconde isso da filha. No remake, Nice foi fruto de um estupro, mas no original isso nunca fica claro. Apenas que Onias era um homem sem escrúpulos e perigoso, e Alzira depois de ter Nice a deixou num orfanato. Anos depois ela se arrepende e volta para buscar a menina, mas Alzira nunca conseguiu esquecer o passado e criou Nice com amargura e frieza. Tanto Vanda Lacerda como Regina Dourado interpretaram muito bem o papel da mãe sombria de Nice, cada uma à sua maneira.


Alzira se nega a falar de Nice com Onias, mas ele arranja um jeito de se aproximar da filha. Átila Iório interpretou o mesmo personagem no remake, mas com o nome Josias. O ator ficou consagrado no cinema por filmes como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos

Onias com Catarina (Lídia Vani), a arrumadeira da casa que adora uma fofoca e vive batendo boca com Nice

Na versão de 1997, o pai de Nice é um bandido perigoso que passa a chantageá-la depois que ela se casa com Rodrigo, entre outras tretas mais cabeludas. Em 1976, ele é só um homem misterioso que quer se aproximar da filha, sem ela saber que ele é seu pai. Alguns sites da internet dizem que Alzira o mata e vai parar na cadeia depois, mas nada disso aconteceu! Depois que a verdade toda é revelada, Alzira e Nice começam a ter um relacionamento mais amigável e menos amargo. Nesse ponto da história, acho que Maria Adelaide soube temperar melhor o conflito no remake. Na primeira novela fica a impressão de que esse conflito poderia ter rendido mais.


Enquanto tudo isso acontece, Stela (Pepita Rodrigues) esquece até o próprio bebê no churrasco e só pensa nas supostas traições do marido Getúlio (Osmar Prado), que realmente esconde um segredo: ele é de origem pobre e tem uma família no bairro de Nice. Nenhuma ex-mulher e filha como no remake

A patroa Stela, enquanto isso no lustre do castelo, fica tão preocupada com ciúmes do seu marido que é uma das poucas que desconhece o envolvimento de Nice com Rodrigo. No remake, o marido se chama Tadeu, mas no original se chama Getúlio (Osmar Prado). O casal rendeu bons momentos cômicos e fez sucesso nas duas versões. Pepita Rodrigues (sim, a mãe do Dado Dolabella), estreando em novelas da Globo, recebeu dois Troféus Imprensa: de Destaque Feminino e de Mais Bela da TV. Uma boa atriz das antigas que merece ser mais lembrada. Ela abandonou a carreira artística nos anos 80, e desde então voltou a atuar apenas de forma esporádica como em A Lua Me Disse (2005) e Boogie Oogie (2014)


Stela recorre a Téo (Sérgio Britto), braço direito da família nos negócios, para ajudá-la em seus problemas conjugais. Téo tem uma dívida de jogo com Rui, o pai tirano de Paula, e vira um fantoche nas mãos do empresário sem caráter

O grande segredo do marido de Stela no original é mais simples: ele é de origem humilde e esconde que tem família no mesmo bairro de Nice, Jacarepaguá. Teresa, que falamos acima, é sua irmã, e Carmen (Gilda Sarmento) sua mãe. Stela um dia vê Getúlio com Teresa juntos e pensa que ela é amante do marido. A partir daí ela torna a vida de Teresa um inferno, sem saber que ela é irmã de seu marido. No remake, o personagem esconde um segredo mais espinhoso: uma filha de uma antiga relação.


Stela é insegura e brava, mas gente boa e engraçada. Porém, como era de se esperar, muito elitista e conservadora em suas falas

Tudo parecia ir bem para a babá, saindo com Rodrigo de vez em quando, recebendo presente e beijando o amado às escondidas pelos cantos da casa (a saliência dos dois é bem maior nessa versão original). Mas surge uma nova ameaça aos planos de Nice: a romântica amiga de infância de Rodrigo, Léa (Renée de Vielmond), apaixonada pelo rapaz desde sempre. Rodrigo nunca levou Léa a sério até então, mas ele de repente começa a se interessar e namorar a jovem. Por um tempo Rodrigo namora com Léa publicamente mas sai escondido com Nice, sem saber com quem vai ficar. Eventualmente Nice cobra uma decisão de Rodrigo. Ele de início parece mais atraído por Nice, só que depois de passar uma noite de amor com Léa (sugerida apenas pela toalha da moça jogada no chão), Rodrigo volta para casa decidido a se casar com Léa e termina tudo com Nice. Ao som do triste instrumental Blue Dolphin, Nice fica arrasada e confidencia ao seu bebê Edinho que vai acabar com o casamento de Rodrigo e Léa.


O triângulo amoroso principal da novela: Nice (Susy), Rodrigo (Wilker) e Léa (Renée de Vielmond). Renée abandonou as novelas e hoje vive discretamente fora da vida pública


Léa é doce e delicada, mas meio sonsa também. Quando confronta Nice, se sentindo ameaçada, revela seu preconceito achando que um homem fino com uma babá é uma "coisa estúpida", e que Nice é um "anjo mau". Nice promete secretamente acabar com a pose da sonhadora mimada. Num aceso de ódio, Nice despreza a simpatia forçada de Léa e diz que a odeia por ter lhe tirado Rodrigo.


Nice fingindo simpatia com Léa mas a odiando por trás. No remake a personagem foi rebatizada de Lígia (e a Lígia do Ricardo deixou de existir)

Odete (Rosita Thomaz Lopes) e Marilu (Ilka Soares super classuda), as grandes fofoqueiras da novela. Marilu é mãe de Léa e casada com Téo (Sérgio Britto). Sonha em ver a filha casada com Rodrigo. Fica sempre menosprezando os "empregadinhos" e achando um desaforo que eles não saibam onde é o lugar deles. Para seu desgosto, Léa se apaixona por Luiz, o irmão pobre de Nice


Um grande confidente de Nice é o seu irmão Luiz (Mário Gomes). Rapaz perdido na vida, vive brigando com os pais assim como Nice, por querer uma vida diferente. Essas discussões entre pais e filhos são interessantes e ainda atuais, por mostrar o eterno conflito entre gerações diferentes. Alzira e Augusto representam uma geração sofrida que viveu de trabalhar e sobreviver. Nice e Luiz são jovens ambiciosos e deslocados, ambos querendo algo a mais da vida além de trabalho e uma vida quadrada. Luiz se recusa a trabalhar em um banco apenas pelo dinheiro, optando por trabalhar na galeria de arte de Lígia, amante de Ricardo, mesmo com um salário baixo. Lá ele conhece Léa por acaso, e se encanta pela moça. Para azar do jovem, Léa está de casamento marcado com Rodrigo. 


Luiz é ambicioso como Nice, mas tímido e sem a força de vontade da irmã


Na versão original, Nice tem também uma irmã mais nova, Toninha (Kátia D'Angelo), sonhadora e meio burrinha. Ela vive sendo seguida por um vizinho tímido, Zelão (Fausto Rocha), que nunca tem coragem de se declarar. Maria Adelaide Amaral cortou essa personagem no remake, que no fim não agrega tanto à história

Nice descobre o amor do irmão por Léa e arma um plano maquiavélico para acabar com o casamento de Rodrigo: arma um flagrante com Luiz e Léa juntos dentro de um carro à noite para que Rodrigo veja e pense que eles têm um caso. O plano diabólico rende um capítulo inteiro, e uma coincidência sombria: eles falham em telefonar para Rodrigo aparecer na cena armada na hora planejada, mas por ironia do destino ele vai lá assim mesmo e presencia tudo como esperado. Nice ainda diz depois: "tinha que acontecer, foi coisa do demônio, ele me ajudou; eu não me arrependo de nada". O conflito chega a ter uma aura shakespeariana, lembrando Otelo. Até tons de suspense de filme noir também.


As falas de Nice sobre Deus são curiosas. Ao invés de ter uma postura condescendente de "Deus queira, Deus é fiel, Sangue de Jesus tem poder", Nice diz que Deus não gosta muito dela e tudo para ela sempre foi sacrificado e difícil. Ela é uma pessoa revoltada com a vida e, se sentindo azarada e passada para trás na ordem das coisas, brinca de Deus e faz uso de planos maquiavélicos para conseguir o que quer e mudar o destino dela e dos outros ao seu redor, de maneira fria e calculista, visando apenas o benefício próprio. Pode-se dizer que a babá chega a ser até amoral. Tem remorso pelo que fez, mas não necessariamente arrependimento. Sua passividade no casamento, quase uma escrava de Rodrigo, não deixa de ser uma espécie de luta interior. Será que Nice é de Capricórnio? Risos.


A mãe de Nice, Alzira (Vanda Lacerda) é muito dura com a filha, mas sempre tem uma intuição forte sobre o que se passa à sua volta e percebe quando Nice mente ou planeja algo

Rodrigo fica arrasado e termina tudo com Léa. Previsível, ele volta a procurar Nice, mesmo não a amando. Ela diz que o ama e faz tudo por ele, até casar sem o amor dele. Ele consente, e os dois se casam escondidos no cartório. Ele deixa claro que não a ama e não quer filhos. O bebê da casa é o único alento de Nice.


O casamento na igreja, infelizmente, só acontece nos sonhos de Nice. No remake, Nice ainda consegue casar com Rodrigo no civil e depois no religioso toda de branco
 

Nice paga todos os seus pecados durante o casamento com Rodrigo. Se no remake o grande problema era Paula e suas vilanias, no original é o "fantasma" de Léa sobre Rodrigo, que no fim não sabe amar ninguém e fere todos ao seu redor. Nice sofre pela indiferença cruel de Rodrigo e passa a praticamente mendigar pelo amor dele, sofrendo passivamente com as humilhações não só dele mas de toda a sociedade que a rejeita. É triste constatar, mas muita coisa não mudou nesse aspecto. Não espanta tanto hoje em dia um patrão casar com um empregado como antigamente, mas a sociedade ainda é muito preconceituosa e só aprenderam a esconder melhor (quer dizer, nos últimos anos tem sido uma verdadeira caixa de Pandora por conta das correntes neonazistas, mas isso é outra história). 

Nice parece mais a empregada de Rodrigo do que sua mulher. Ele usa o casamento apenas para atacar a família, a sociedade e Léa. Ela aceita a indiferença de Rodrigo passivamente, com esperança de um dia ele gostar dela e esquecer Léa

Nice fica tão passiva e apagada nessa fase que dá até preguiça... No remake Nice fica meio boba também depois do casamento mas ainda tem seu momento de madame e mais amor próprio, tanto que depois Rodrigo vai atrás dela e luta para conquistá-la. A Nice da Susy continua sendo babá por falta do que fazer e no máximo tira o uniforme, mas ainda vive de cabeça baixa e tratando as pessoas formalmente, sem saber se impor. Um misto de tristeza por não ser amada por Rodrigo e talvez um complexo de pobreza. Afinal, ela cai de paraquedas numa realidade diferente, não tem muito estudo e nem referências, e apoio de praticamente ninguém. Momentos felizes de Nice com Rodrigo são raros, o que deixa um gosto amargo na boca. E o final, que poderia ser um alento típico de folhetim, não é bem assim... Comentarei em instantes.


Nice nunca consegue ser plenamente feliz, nem mesmo no final. A lei do retorno é cruel com a moça. Nem umas roupinhas mais chiques no guarda-roupa

 O flagrante armado tem um peso dramático muito maior na versão original. Suas consequências perduram até o final da novela, pois é um segredo que tanto Nice como Luiz escondem de seus amores. Nice se casa com Rodrigo mas pasta uma dezena de capítulos nas mãos dele. Luiz tenta por muito tempo conquistar Léa, que não consegue parar de pensar em Rodrigo e lamentar o mal-entendido. 


O que Rodrigo tem de charmoso, tem de chato. Wilker não gostou do personagem e dá pra sentir o seu desconforto em fazer galã romântico


Rodrigo é um personagem chato e enjoativo por conta da sua eterna inconstância. Descontente em ser galã e com a chatice de seu personagem, José Wilker se indispôs com a produção e teve problemas com o diretor da novela, Régis Cardoso. Até a sua esposa, Renée de Vielmond, se juntou ao mal-estar com a emissora na época. E não foi apenas Wilker; Maria Adelaide Amaral tentou ajustar o personagem Rodrigo e o deixou mais palatável no remake, mas ainda assim não gostou dele e muitas vezes fica meio difícil entender ou gostar de um cara riquinho e egocêntrico que não sabe o que quer, tem pouca empatia, vive na fossa e ainda usa e trata mal as mulheres com quem se envolve. O que salva mesmo é que Wilker tinha charme e carisma, daí a gente pode até relevar o fato dele sair com Nice e Léa ao mesmo tempo na primeira fase da novela, dando esperança para ambas. Uma das coisas que Rodrigo mais diz para Nice é "nunca te prometi nada", fala típica de homem embuste para justificar a sua frieza. Empatia zero... Mas, é inegável que Susana e Wilker têm uma ótima química em cena, não à toa repetiram a parceria várias vezes na televisão, como em Fera Ferida, A Próxima Vítima, Senhora do Destino e Duas Caras.


As revistas de fofoca acertando como sempre nos finais, só que não

Algo que mudou para melhor com o tempo foi a diminuição daquela coisa de homem como o centro do universo e única coisa que importa na vida de uma mulher. Quando uma personagem está triste, a solução mágica recomendada é: "arranja um namorado". Ainda tinha dessas coisas nos anos 90 e 2000, mas antigamente era muito mais. O Ricardo do Luís Gustavo chega a ter quatro (!) interesses amorosos numa certa altura da novela, o que chega a ser um pouco demais. Novamente, é o charme e o carisma do ator que fazem a gente rir e não levar a sério. E claro, o texto divertido e bem escrito. De seus interesses, quem ganha pontinhos é Flávia (Clarisse Abujamra), que tem os pés no chão e dá um fora no cara porque se recusa a ser usada por ele como um brinquedo. Enquanto isso, Paula usa de chantagem para amarrá-lo (sem sucesso, ela termina com Fernando), Lígia aceita ser chaveirinho e sair com ele quando ele não está com outra mulher, e Toninha, não correspondida e muito nova para ele, dá uma chance para o tímido Zelão.


Ricardo é um personagem mais leve, simpático e divertido, mas é tão mal resolvido quanto o irmão. Seu tema internacional, She's My Girl de Morris Albert, estourou nas paradas musicais

O grande spoiler de todos: Nice morre no fim da novela original


Anjo Mau fez Cassiano Gabus Mendes ter sucesso logo de cara em sua estreia na Rede Globo, e a repercussão foi tanta que de certa forma moldou o estilo das novelas das sete seguintes - novelas divertidas, modernas, charmosas, com pitadas de drama típico de folhetim. Porém, a trama principal do original tem um tom dramático mais acentuado, principalmente na segunda fase depois do flagrante que muda a vida de todos os envolvidos. O final dramático e anticlimático de Nice, junto com a fotografia preto e branco, deixam a novela com um ar melancólico e agridoce. A grande ironia é que a novela em partes termina como começou: Ricardo mulherengo pegando geral sem compromisso e Rodrigo novamente interessado pela nova babá da casa, Sônia (participação especial de Débora Duarte no último capítulo). Foi genial da parte de Cassiano Gabus: Nice pode ter morrido e todo mundo se esqueceu dela em um mês, mas o patrão se interessa de novo pela empregada, e tudo começa do zero.


Léa amadurece depois de todo o sofrimento pelo qual passa. Depois da decepção amorosa, ela sai da redoma e vê com olhar crítico os valores tortos de sua família classe média alta - a mãe fútil que só pensa em status e bom casamento, e o pai que é um bom homem mas fraco e acomodado. Nice falece no penúltimo capítulo, logo o grande suspense do último episódio é: quem vai ficar com Léa, Rodrigo ou Luiz?


Léa sofre muito com a calúnia armada por Nice, mas o sofrimento a faz amadurecer. Nice tinha razão: Rodrigo no fim era uma obsessão dela, um capricho de infância. Aliás, fica a impressão de que ninguém nessa história sabe amar: Ricardo quer todas e zero amarras; Rodrigo muda ao sabor do vento e mais fere do que afaga; Paula ama Ricardo de forma infantil e possessiva; Nice ama de forma desesperada e servil; e Léa passou anos devota a um amor de infância platônico, que enfim vira realidade, e no primeiro conflito desaba feito um castelo de areia.

O novo amor por Luiz a faz crescer e deixar o passado para trás. Eventualmente o rapaz confessa toda a armação para Léa. Rodrigo descobre tudo e tenta se reaproximar de Léa pedindo perdão, mas ela o rejeita e prefere viver esse novo amor com Luiz, perdoando-o pelo plano de Nice e seguindo em frente ao lado dele. 


Renée de Vielmond e Mário Gomes na época da novela


Nice vive um verdadeiro inferno até Rodrigo ceder e começar a se interessar por ela. Ele fica revoltado quando descobre que Nice está grávida, mas depois de um tempo aceita e jura que a partir de então eles serão felizes. Nem um capítulo se passa e Nice, encurralada, conta toda a verdade sobre o falso flagrante de Luiz com Léa e Rodrigo novamente passa a desprezá-la. Uma rápida passagem no tempo mostra que Rodrigo, aos poucos, se aproxima de Nice, cada vez mais grávida, e abaixa a crista finalmente. 

A ideia inicial era mesmo Rodrigo e Nice terminarem juntos, mas a Censura Federal da época exigiu que Nice morresse no final da trama pois não aceitava que "o mal vencesse o bem", isto é, Nice não podia ter um final feliz depois das maldades que fez. Claro que por trás também tinha o preconceito velado que se negava a ter uma babá casada com o homem rico e feliz no final, o que gerou revolta de boa parte dos espectadores que odiavam Nice. Susana Vieira chegou até a ser agredida na vida real.

Cassiano Gabus depois disse em um programa de TV, para desconversar, que matou Nice porque "as pessoas morrem". Mas o fato é que Nice morreu mesmo por exigência da censura. E também pelo preconceito, que até hoje existe mas numa menor escala.

Fica um gosto amargo na boca, mas por outro lado, Cassiano Gabus fez um final atípico não só pela morte da protagonista, mas também pelo fato de não ter havido casamentos ou aquele festival de gravidez e bebês. Foi tudo bem sóbrio e pé no chão, mas sem perder a piada (típico de suas histórias).

"Eu não me arrependo de nada, eu nasci para ser sua mulher". Nice dá a luz a uma menina, mas não resiste e morre depois do parto. Ela se despede de Rodrigo e dá um beijo final no amado. "Deus não gosta muito de mim, pois não quer me ver feliz".


Para a alegria da nação, e pedido do público, Nice teve um merecido final feliz na segunda versão, sem mais exigências dos censores. A ideia original de Maria Adelaide era deixar Nice sozinha e feliz, mas por pressão da Globo e do público juntou a moça com Rodrigo (eu acho que Rodrigo não merece Nice, mas tudo bem, folhetim gosta de final feliz)


REFLEXÕES FINAIS 


Maria Adelaide Amaral também trouxe uma nova babá no último capítulo: a própria Susana Vieira (que dá a entender que é sonsa e ambiciosa como Nice)

Maria Adelaide Amaral foi feliz na sua repaginação da novela nos anos 90. Ela não fez simplesmente um remake, ela criou uma novela dela mesma a partir do argumento original, condizente com o momento em que foi produzida. Sendo cada uma um produto de seu tempo, é impossível falar de melhor ou pior. Eu particularmente apreciei ambas.


“Quando começamos a ler os capítulos originais, percebemos que era uma novela datada. Tinha sido exibida numa época em que o controle remoto não existia. Havia cenas intermináveis sobre o preço do chuchu e da abobrinha na feira, e páginas e páginas nas quais os personagens só jogavam baralho (…) Em 1997, a realidade era outra. Então o remake precisava ser mais ágil”, disse Maria Adelaide ao livro “Autores”.


"A morte de Nice deu 90% de audiência", diz Susana orgulhosa da repercussão 

Anjo Mau original, apesar de tudo, merece sim ser vista e resgatada. Tem seus poréns e coisas que dataram sim. Nem tudo que data é necessariamente ruim, por vezes é o verdadeiro charme de uma obra antiga: a inocência de um tempo que não existe mais; o fato de ser um total registro de seu tempo, e deve ser apreciado como um produto desse tempo (sem também passar pano para coisas pejorativas e démodé, como o elitismo nojento de muitas falas dos personagens e o comodismo conformista dos mais pobres - mas sinceramente, as pessoas mudaram tanto o pensamento?). O Brasil continua um país conservador, reacionário, desigual, preconceituoso e à mercê das elites. Houve evoluções e progressos, mas não o bastante.


A televisão chilena adaptou muitos folhetins de Cassiano Gabus. Uma adaptação marcante no país foi Angel Malo em 1986

Temos que levar em conta que havia bem menos atores nos elencos antigos, assim como menos tramas e menos números de capítulos, estilo esse que a Globo está atualmente resgatando há alguns anos, deixando para trás aquela tendência de novelas com 100 personagens e mais de 200 capítulos. Ainda que o ritmo antigo seja mais devagar, as tramas são mais concisas e com menos personagens, extraindo bem de cada ator um ótimo desempenho e um desenvolvimento satisfatório. Era uma marca de Cassiano em suas histórias: raramente passavam dos 30 personagens, de forma que tudo girava de uma forma ou de outra em torno da trama central. O remake de 1997 tinha bem mais personagens, boa parte deles muito bons e bem interpretados. Enfim, estruturas diferentes de novela em épocas distintas. 


Trouble in Paradise...

Uma outra coisa boa das primeiras novelas é uma qualidade que se perdeu com o tempo: uma vibe cinematográfica e/ou teatral, às vezes até experimental, de fazer TV. Errinhos ou deslizes às vezes passavam, sem o tom perfeitinho e artificial que tem hoje. A maquiagem nem sempre perfeita, algumas imperfeições nos rostos dos atores - nem acho ruim, torna a coisa mais real e menos higienizada. Em muitas cenas dá pra notar que os atores se enrolavam nas falas ou até trocavam nomes (!), mas a cena ia ao ar mesmo assim. 

A Globo tinha pouco mais de 10 anos em 1976, o padrão Globo de qualidade ainda não estava consolidado. Nessa época tinha atores de verdade e artistas, escritores vindos do teatro e do cinema, e não de redes sociais ou agência de modelos (até as modelos dessa época se tornaram boas atrizes). Ainda não se tinha medo de ousar e fazer diferente com medo de perder audiência ou desagradar quem quer que fosse, ainda que sob regime militar. Ou seja, era uma época de grandes talentos que talvez nunca mais vamos ver igual. As tecnologias evoluíram e o produto telenovela idem, mas perdemos muito da qualidade artística do conteúdo, infelizmente. As tramas podem ser lentas, mas e aqueles diálogos cheios de referências cultas e às vezes carregados de lirismo? Ou corriqueiros mesmo de falar de preço da feira ou coisa que o valha... A simplicidade despretensiosa também faz falta, num mundo cada vez mais rápido, engessado e imediatista. Não me importei com o fato de em alguns capítulos nada de muito relevante acontecer. A atmosfera e o feeling nos prendem mais do que os fatos concretos da história muitas vezes, e novela é algo mais leve para não pensar muito no fim das contas.

Mais um ponto positivo desta e das novelas antigas também é a excelente trilha sonora com músicas maravilhosas escolhidas a dedo, cada uma combinando perfeitamente com seu respectivo personagem. Recomendo tanto a nacional como a internacional! Eu tenho os dois LPs, inclusive um deles está autografado pela própria Susana Vieira (comprei há alguns anos na internet). Eu sei que foi autografado em 2012 pela atriz na saída da peça A Partilha.


Não sei por que o Humberto se desfez do vinil, mas eu o resgatei no Mercado Livre


Eu também tenho autógrafo dos atores José Wilker, Luís Gustavo, Pepita Rodrigues e Osmar Prado. Grato a cada um deles pelo carinho para comigo.


Autógrafo de José Wilker (Rodrigo)


Autógrafo e carta de Luís Gustavo (Ricardo)



Se você gosta de novelas antigas, não tem preconceitos com obras do passado e está a fim de um entretenimento clássico e sem pressa, acredito que vá gostar de ver essa novela que hoje podemos chamar de cult. Que mais novelas raras saiam da masmorra do CEDOC e voltem à luz do dia! 


Nice forever

Até a próxima, 

Pedro


Dezembro de 2022

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