segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Bye Bye Brazil: Direitos autorais, DVDs, estúdios, cultura, cinema, streamings, livros, memória e esquecimento (e mais algumas coisas)





Dedico esse texto para a geração do "tem no Netflix?"


Um filme da Doris Day que postei no meu canal no Youtube foi bloqueado por conta de direitos autorais reivindicados pela Warner Entertainment. O filme foi produzido pela MGM nos anos 60, se chama Onde Estavas Quando as Luzes se Apagaram (Hy Averback, 1968). Este filme não foi lançado oficialmente pela empresa, nem no Brasil nem lá fora, e eu o adquiri de uma gravação na televisão russa - e ainda tive o trabalho de deixar apenas o áudio em inglês para exibição. Lembro que este filme já passou no TCM do Brasil há muitos anos para então nunca mais. Ainda assim, sem nenhum acesso ao filme além dos links russos (que são praticamente uma deep web cheia de tesouros fora do eixo América-Europa), meu vídeo foi bloqueado. 

Provavelmente a Warner detém os direitos assim como de muitos filmes da Metro, que se desfez e nem tem status de estúdio mais, após inúmeras crises financeiras e decretos de falência. O que um dia foi o céu de estrelas na terra, do nível de Garbo, Gable, Harlow e etc, hoje é só uma sombra de si mesmo. Creio que o auê foi por ser a Doris Day, aliás um ícone, talvez uma das mulheres que foi mais rentável no box office da história do Cinema Americano, que faleceu sem o mínimo reconhecimento da Academia do Oscar a não ser um futuro In Memoriam feito num Power Point sem inspiração. Quantos anos de premiação eu já testemunhei com várias gafes e esnobismo com relação aos atores que ajudaram a fazer a indústria de hoje? Ou homenagens pobres e desleixadas. Liza Minnelli ter de ficar sentada vendo Pink cantar a música Over the Rainbow de sua mãe em plena homenagem de O Mágico de Oz. Kim Novak, musa de Hitchcock, sendo ridicularizada em público só pela sua aparência. Faye Dunaway e Warren Beatty, eternos Bonnie e Clyde, motivos de chacota por causa de um erro que nem foi deles. Emmanuelle Riva, em seu aniversário aos 80 anos concorrendo após anos de ostracismo, perder o prêmio de atriz para uma starlet insossa chamada Jennifer Lawrence. E a lista vai longe... 


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Day, esnobada até hoje pela academia, ao menos recebeu em vida um Cecil B. DeMille Honorário no Globo de Ouro pela sua carreira. Reformulo a pergunta do título do filme: O que aconteceu para as luzes se apagarem?

Acho engraçado a Warner reivindicar tanto direitos de clássicos mas não ter a decência de fazer lançamentos atualizados do seu acervo, seja no Brasil como no mundo em geral. A Warner Archive faz sob demanda os dvds, são caros na maioria das vezes e só tem o filme, sem mais nada de extra ou legendas. E muito filme permanece raro, inacessível, em gravação ruim de VHS ou televisão, e ainda assim quando tentamos ao menos colocar online para assistir, sem lucrar NADA em cima, ainda há o bloqueio e retirada de tudo do ar. 

Nós amamos a Criterion Collection, mas são poucos que possuem condições de arcar com aqueles DVDs importados; mais ainda quem não fala inglês ou outros idiomas. A Versátil, se que sente a Criterion do Brasil, até tem melhorado e feito muitos lançamentos bons, seja de filmes avulsos como de coleções, mas ainda assim, tem um preço bem salgado nos seus produtos. Distribuidoras como ela são alentos perto dos lixos que empresas de garagem como a Continental, Paragon e Silver Screen (e outras) faziam/fazem por aí, com DVDs caros e malfeitos. Sem falar dos inúmeros erros ortográficos com os nomes dos atores, imagens e infos erradas, artes cafonas e de baixa qualidade, nada de extras, até mesmo o PLÁSTICO da embalagem era ruim... Até mesmo de algumas distribuidoras atuais em atividade, que não citarei nomes.

O Home Video do Brasil tem passado por uma fase de ruínas há alguns anos. Quem tem o costume de (ainda) comprar mídias como DVDs e BluRays pode atestar que desde a década de 2000 para a de 2010, a qualidade dos lançamentos de filmes clássicos decaiu bruscamente. Muitos títulos com o tempo ficaram fora de catálogo, esgotados no fornecedor, e até hoje estão desaparecidos das prateleiras das lojas. Uma luz no fim do túnel tem sido as distribuidoras independentes como a Classicline e a Obras-Primas do Cinema, as quais têm se proposto a lançar principalmente filmes clássicos e cults para um público que não é apenas "nicho", mas um dos mais fieis que existe. Nicho não é lixo, com o perdão do trocadilho. É burrice alguém pensar que clássicos não são lucrativos, mas há a lenda da presidente da Warner (não sei quem é, nem me interessa). A suposta senhora que resolveu sucatear o catálogo de filmes antigos e descartar completamente dos lançamentos da empresa, o que explica o sumiço gradual dos filmes do mercado - se você quiser adquirir um destes dvds raros, só achará em sebo com sorte, em lojas escondidas nos centros das cidades, ou no Mercado Livre na mão de vendedores careiros que vão lhe meter a faca sem dó. Ou ainda, quem for muito rico no Brasil de hoje, pode tentar importar os filmes, após muitas taxas e dores de cabeça com a alfândega. Afinal, até mesmo livros estão sendo taxados dependendo do caso.

Para a Warner, apenas Friends, Harry Potter, E o Vento Levou e O Mágico de Oz existem.

Já vi filmes até mesmo mudos sendo retirados. Um filme de Marion Davies que resolvi compartilhar, da década de 20, logo com quase com 100 anos de idade, foi também removido. Mas tudo bem, ele não se enquadra à lei de filmes até 1924, que é a data estabelecida para se ter o domínio público, e o filme tinha o logo do TCM. Fair enough, mas não acaba aí. Adoro o canal TCM (Turner Classic Movies), mas não acho que ele ou a Turner deveriam deter esses filmes como suas propriedades. Não é todo mundo que é americano e pode arcar com este canal, que após a morte do Robert Osborne (host do canal) só decaiu e passa até filmes da Jennifer Lopez na sua programação. Até mesmo o canal americano tem decaído na qualidade para atrair mais o público, desrespeitando a proposta original do canal em focar apenas nos antigos. 

A questão de sucatear a qualidade para satisfazer o público cada vez maior da TV paga não é nenhuma novidade, ainda mais num país de terceiro mundo que possui mais antenas de TV do que saneamento básico. A versão brasileira do TCM no Brasil já foi muito boa até o início dos anos 2010. Passavam muitos filmes antigos das grandes estrelas, desde Bette Davis até Natalie Wood e Elizabeth Taylor, e galãs desde Cary Grant a Marlon Brando e Paul Newman. Assim como também passavam séries antigas como Jeannie é um Gênio, Dallas, A Feiticeira, Agente 86I Love Lucy, etc - propostas cool que o Nick at Nite da Nickelodeon também já teve e abriu mão, mostrando que até o público infanto-juvenil sofreu com a queda na qualidade de sua programação. Fãs de desenhos hipsters que me perdoem, mas eu sinto pena das crianças de hoje em dia: os canais como Nick e Cartoon Network (este último também da Turner, aliás) viraram uma porcaria. E o TCM atual no Brasil virou uma paródia do canal TNT, que já é outra porcaria também. Ídolos da Era Dourada de Hollywood deram lugar a Matrix e filmes do Sylvester Stallone. 

Desculpem, mas Matrix não é um clássico.


Canais como o Arte1, ou até mesmo o Canal do Boi e a Rede Brasil, se mostraram ultimamente alternativas para clássicos e cults 

Robert Osborne, apresentador do TCM americano (1932-2017)

O Telecine Cult ainda mantém uma programação até interessante, mas repetitiva e pouco inspirada. Os filmes antigos que transmitem costumam ser da Fox ou da Paramount; creio também ser alguma coisa de direitos autorais. Quem teve sorte ou ainda se lembra, o canal já se chamou Telecine Classic, que passava muito mais variedade de filmes clássicos e alternativos. Hoje, é só história... E lembremos que o pacote de filmes Telecine e HBO não são baratos, e ainda por cima não valem a pena, pois são cheios de filmes pipoca, reprises infinitas e pouco filme de verdadeira qualidade. Isto é, quando um filme pode nos interessar, ele passa... Às quatro da manhã de uma terça-feira. A pergunta é: a quem se destinam esses filmes perdidos numa madrugada ou manhã de dia útil? São apenas transmissões para se dizer que "se passa clássico". Transmissões mais tapa-buraco do que as indicações da Meryl Streep para o Oscar. Muito que bem. Pode ser o pior filme nacional possível, mas vamos passá-lo sempre, para cumprir a lei de Cota de Tela. Agora, desenterrar aqueles filmes bons, nem precisa ser tão antigo, para que se temos que resolver problemas de exibição, direitos, quando podemos passar o filme do Didi? Pois... Eu cansei de procurar filmes nacionais com má qualidade, quase inexistentes, que devem estar mofando no porão do MAM ou da Cinemateca Brasileira (que até outro dia estava mandando muita gente embora prestes a decretar falência). Museu queimam no Brasil, fecham suas portas, mas o que importa se temos um novo shopping center ali na boca do metrô? A situação do Brasil, para questão de preservação, de fato é muito pior. No Hemisfério Norte, ainda com muitos problemas e injustiças típicas do sistema, ainda há uma noção de preservação e restauração. Ok. Vou contar uma história e ela é bem deprimente, mas ocorreu em Hollywood, Califórnia, e nos faz pensar.



O Cine Conhecimento era uma ótima pedida nos meados de 2010. Foi lá, depois da decadência já explícita dos clássicos na Tv aberta, que eu me aventurei em muitas produções antigas e raras. As madrugadas da Band às vezes se inspiram e passam filmes de Marilyn Monroe, quando não ficam só com Emmanuelle. A Globo, com raras exceções, parece ter esquecido de filmes anos 80 pra baixo

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Nasce uma Estrela de 1937, primeiro clássico ao qual assisti na vida, foi no Cine Conhecimento

Debbie Reynolds pode ser mais lembrada hoje por sua participação no filme Cantando na Chuva (Singin' in the Rain, Stanley Donen, 1952), mas a atriz colecionou por décadas muitas peças valiosas dos estúdios de cinema. Um hábito não muito comum da indústria cultural é a preservação, já que o mais visto são fitas e objetos de coleção sendo descartados, jogados no lixo, ou incêndios catastróficos como os que queimaram quase todo o acervo da nossa Televisão dos anos 50, 60 e 70 (vide incêndios da Globo, que falarei mais para frente). Relembro até a vocês que era hábito de praxe das filmagens de antigamente reutilizar os rolos de filme para reaproveitar o material, gravando por cima do antigo, logo o perdendo completamente. E também a questão do componente do material do filme, nitrato de prata (ou similares), ser altamente inflamável. 

Bem, a parte triste da história é que décadas de esforço de Reynolds foram marcados por muitos perrengues, chuvas de processos e esnobismo por parte da classe artística para com seu trabalho de preservação. Acreditem: Debbie procurou muitas pessoas e organizações nos EUA e até seus últimos anos, infelizmente, não conseguiu ninguém para patrocinar ou financiar um museu para os itens. Até mesmo George Lucas e Steven Spielberg, além do pessoal que gere a Dollywood de Dolly Parton no Tennessee, viraram a cara para Reynolds e sua coleção. "Quem vai querer pagar para ver isso?", muitos disseram a ela. 


A coleção de Reynolds reunia artefatos históricos e inestimáveis como looks do filme Cleópatra; o vestido de Audrey Hepburn em My Fair Lady; os sapatinhos vermelhos de Judy Garland d'O Mágico de Oz; e o eterno vestido branco de Marilyn Monroe de O Pecado Mora ao Lado

"Ah, mas ela não é rica e mora em Beverly Hills, como assim". Bem, queridinhos (como diria Ava Gardner), a Debbie foi uma estrela da MGM há muitas décadas e realmente não era pobre, mas ela não teria como arcar com um museu sozinha, só se fosse bilionária. Mesmo artistas, tendo dinheiro ou não, pagam impostos (altos) e tem de pagar plano de saúde, contas, manter casas não muito baratas e muitas outras questões, como qualquer mortal. Segundo sua autobiografia Unsinkable, de 2013, Reynolds sofreu muitos processos, principalmente quando abriu um Hotel em Las Vegas que deu mais errado do que certo, e sacaneada ainda por cima por maridos e colegas sacanas que a exploraram. A atriz já chegou a passar a noite dentro de um Cadillac por não ter onde dormir. Já chegando aos 80 e sem mais condições de cuidar da coleção sozinha, Debbie foi obrigada a começar a fazer leilões. Não conseguindo financiar um museu, a coleção foi desmembrada entre desconhecidos arrematadores de diversos lugares do mundo. 

Carrie Fisher, a eterna Princesa Leia, morreu no final de 2016 repentinamente. Debbie, sua mãe e amiga, não suportou a partida da filha e morreu após um AVC no dia seguinte. Suas últimas palavras foram: "eu quero estar com Carrie". Que as duas descansem em paz...

Voltando aos estúdios, a Fox parece que pouco se importa com direitos pois vejo muitos filmes do acervo (anos 40-50) em canais de TV e até mesmo no Youtube na íntegra. Acho que clássicos da Marilyn Monroe, A Malvada e outros filmes da Bette Davis e etc. devem ser os poucos filmes clássicos que se importem de preservar e lucrar em cima. Agora então, com a compra do estúdio pela Disney, fica um grande questionamento: qual será o futuro do acervo da Fox nas mãos da Disney? O Mickey Mouse se parece mais com o Tio Patinhas quando o assunto é lucro. E se compararmos o antigo Walt Disney Studios dos clássicos antigos, eu cuspiria na Disney atual se fosse o Walt Disney em pessoa. Embustismo e antissemitismo à parte, o cara foi um gênio. Ir para a Disney já foi um sonho meu. Hoje faz parte da lista "turismo de Miami/Orlando" pela região cafona da Flórida.

Piadas à parte, agora finalmente após décadas de confusão, Anastasia será de fato uma princesa Disney. Mas esta coroação não acontece de uma forma muito feliz.

A Paramount perdeu o direito de muitos dos seus filmes, principalmente da década de 30 e 40, e estão por aí disponíveis ou perdidos com má qualidade, provindos de fitas ou reprises de TV, clamando por restaurações. Hoje em dia eles só se importam com filmes como Grease, Forrest Gump e etc. A Universal , que também adquiriu estes filmes à deriva da Paramount, também trata mal seus clássicos e pouco os relança de forma decente, a não ser os famosos filmes de monstros e etc. Existem filmes que só mesmo quebrando as regras e infringindo a lei nós poderemos ver, pois estão nos porões dos estúdios, e digo o mesmo para muitas novelas brasileiras das antigas que provavelmente jamais verão a luz do sol numa reprise. O flop do Vale a Pena Ver de Novo parece sinalizar o início do fim da atração nas tardes semanais brasileiras.

Para não dizerem que sou saudosista e acho tudo antigo perfeito: o desleixo com acervo cinematográfico sempre existiu. A lógica mercadológica e capitalista foi, é e será sempre injusta e vítima de amnésia crônica e patológica. Theda Bara é uma das estrelas antigas que tem quase toda a filmografia perdida, como o seu Cleópatra. De seus quase 120 minutos, só se sabe da existência de 45 segundos de takes resgatados do buraco negro. 

Mais do que Norma Desmond! Atualmente uma estatística aponta que 80 por cento dos filmes mudos são considerados perdidos. E eventualmente, alguns filmes surgem de coleções particulares, como foi o caso de Beyond the Rocks (1922), com Gloria Swanson e Rudolph Valentino. Swanson morreu em 1983 sem poder rever o filme, o que era um de seus últimos desejos. A atriz disse que adorava os jovens, pois eles tinham verdadeira paixão pelos filmes antigos e assim os mantinham vivos. Eu infelizmente numa sala de estudantes da Escola de Dramaturgia e Artes da USP já testemunhei uma sala de 50 pessoas onde ninguém levantou a mão quando ele perguntou quem havia visto Crepúsculo dos Deuses. Sobre Tim Burton e Tarantino, a história é outra... 

Filmes da RKO hoje não sei a quem pertencem, creio que à Warner, mas boiam à deriva também e a empresa faliu há muitos anos. Mas foi naquele estúdio onde floresceram nomes do calibre de Fred Astaire, Ginger Rogers e Katharine Hepburn (a maior atriz do cinema americano, segundo o AFI, e a única até hoje a ter quatro Oscar de atriz - e nunca ter ido à cerimônia). Sei que a Desilu (produtora da Lucille Ball, de I Love Lucy) comprou a empresa, mas não sei de mais. Vejo muitos desses filmes na internet também. Aliás, foi a RKO que distribuiu filmes antigos da Disney como Branca de Neve, Peter Pan e Pinóquio, e nada menos do que o visionário Cidadão Kane, de Orson Welles.

O estúdio, apesar dos sucessos, nunca foi bem-sucedido no tratamento das finanças e de seus astros e pagou por isso. Hoje em dia, o que mais se lembram é da sua famosa vinheta da torrezinha que aparece ainda por aí (mas poucos associam de fato com o estúdio)


A mesma imortal Katharine Hepburn, amante das calças, foi declarada junto com outras estrelas da época como "veneno de bilheteria" no final dos anos 30, e ainda teve sua casa destruída por um furacão. Ela poderia ser ficado acabada, mas fez Núpcias de um Escândalo (dir. George Cukor, seu amigo na foto) e se reergueu. Ela não tinha qualquer deslumbre com a ideia de posteridade de seu trabalho. Assim como Woody Allen diz que seus filmes podem ser jogados no mar após a sua morte. Será melhor pensar assim?


A Columbia é um grande ponto de interrogação, pois a Sony Pictures é bem fraca e seus dvds idem. Dizem que o tour pelo estúdio , que já abrigou estrelas do quilate de Rita Hayworth, é um dos mais insossos de Los Angeles. Mas tudo bem, ao menos filmes como Jejum de Amor (His Girl Friday), dos anos 40, são de domínio público hoje. Apesar que eu tentei postar o filme no meu canal e a vênus platinada Sony bloqueou mesmo assim (????) sendo que, o filme está em vários canais do próprio Youtube e outros vários sites, seja online ou download. Vai entender...

Como se vê, depende muito da obra em particular, quem são os autores dos roteiros, os diretores, atores, músicos, enfim, e mesmo independente da data de lançamento da obra, depende de cada caso se só pela idade do filme ele entrará no domínio público ou não. Cada país tem a sua legislação sobre o assunto. Nos EUA, a regra geral é que após 95 anos do lançamento do filme ele automaticamente está no domínio público (isto é, em 2022 todo filme anterior a 1927 já está no domínio público, e assim por diante a cada ano se avança mais um ano, em 2023 se aplicam até 1928 e etc). Muitos filmes entraram no Domínio Público antes desse prazo simplesmente porque seus direitos não foram renovados (caso de muitos filmes americanos antigos).  Mas em alguns casos os direitos de um personagem ou marca podem continuar, como a Disney certamente fará com o Mickey Mouse, que fará 95 anos em 2023 - os desenhos em si ficarão públicos, mas os direitos do personagem em boa parte permanecem Disney. Enfim. Enquanto isso, muitos filmes permanecem no ostracismo sem qualquer ideia de um lançamento digno, ou só podemos acessá-lo através da pirataria, e até esta é mal administrada e perseguida. Será que realmente podemos condená-la?


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Antigo logo da Columbia, antes da photoshopização


A quem interessar: uma das maiores comédias de todos os tempos. Quem gosta dos diálogos rápidos de séries como Gilmore Girls, vai gostar deste filme


Eu sou um daqueles que até hoje carrega o luto pelo Megaupload, pois há muitos arquivos, mesmo que não um 1080p, que eram muito raros e até hoje estão à deriva ou não foram reupados. O site DesvendandoEstrelas era um blog que marcou meu início de cinefilia com clássicos de Davis, Crawford, Hepburn, James Stewart e Clark Gable, mas infelizmente foi para o saco com o tempo, assim como muitos blogs do mesmo estilo (vamos lembrar como é difícil gerir algo assim sozinho ou com poucos recursos, eu mesmo faço minhas coisas sempre só, com poucos apoios). Até mesmo com arquivos RMVB. eu era feliz, quem pode me julgar? Entretanto, não sou idiota de negar o valor de novidades do bem como torrents, muito eficazes e permanecem baixando mesmo sem conexão de internet (afinal, quem nunca morreu quando um download parou no 99%, não é mesmo?). Até mesmo o MEGA é uma versão melhorada do falecido Megaupload. Muito que bem. 

Mas o cerco à pirataria está cada vez mais pesado, com torrents ruins de encontrar, a não ser que você seja bombardeado por malwares e trojans nas suas buscas. No Brasil, ainda se consegue acessar bem esse tipo de arquivo, mas é fato que os filmes mais recentes são as preferências da maioria dos portais. Perdi a conta de quantos filmes mais desconhecidos estão com 0 seed e completamente mortos. Connecting to peers será o epitáfio da minha lápide. Relembro até hoje de sites de streaming alternativos e gratuitos como Toca dos Cinéfilos e MemoCine. Ambos acabaram. A sessão de clássicos do Netflix dá até depressão de olhar.


Os filmes da pequena notável Carmen Miranda, uma de nossas maiores divas, infelizmente são pouco lançados aqui, em seu próprio país, por conta de problemas de direitos autorais

Eu acho importantíssimo reconhecer o direito do autor, afinal EU MESMO SOU UM AUTOR, mas até que preço isso vai? Quem realmente recebe e detém os direitos da obra - é mesmo o autor? A grande questão é a distribuição e acesso aos materiais. O público diversas vezes sai perdendo por não ter acesso ao trabalho do autor. Eu apenas tenho visto empresas lucrando sobre produtos que mal são disponibilizados em boa qualidade para um público que tem interesse nesse material, até mesmo o compraria se pudesse - mas como são nichos, não são o gado comedor de alfafa do mainstream, somos todos ignorados. Os atores nunca receberam dinheiro algum pelas exibições de filmes na televisão, isso se é dito desde os anos 50/60/70, quando começaram a ser exibidos nas redes de televisão. Estão quase todos praticamente mortos, assim como diretores, produtores, extras, técnicos, etc. Só vejo os estúdios e empresários filhos da puta lucrando ou reivindicando obras - que, tirando o nome das empresas - são mesmo suas obras? Além de também famílias herdeiras dos direitos de autores famosos que travam qualquer negociação da liberação das obras com brigas na justiça e até mesmo entre si mesmas por mesquinharia. Enfim. Não existem mais autores, apenas empresas.

O cinema um dia já foi uma das artes mais democráticas, hoje no momento presente eu não sei responder a isto.

E todo dia uma nova starlet do momento que mais se parece com uma streetwalker... Mas A Malvada (All about Eve, Joseph  L. Mankiewicz 1950), o filme favorito das starlets do Projac, sumido das madrugadas da Globo e do Telecine Cult, já nos mostrava a lógica do showbusiness: entra Bette Davis, sai e entra Anne Baxter ardilosa, e então entra... Barbara Bates. E outra e mais outra e mais outra... Não há mais lugar para Margo Channings. O mundo hoje é das Eves.

Mas a lógica, desde o nascimento do cinema, sempre foi a de que "o filme antigo de ontem é ruim, o de hoje é melhor". Carreiras foram arruinadas, estrelas subiram ao topo, muito dinheiro se fez. Ninguém se lembra do que comeu ontem. 

O cinema sempre foi uma indústria, de fato. Mas há um bom tempo Hollywood e agregados parecem se esforçar em realçar cada vez mais, em seus negócios e medidas, a ideia de que o cinema é só uma indústria, e não mais uma fábrica de sonhos. Martin Scorsese quase foi trucidado pelas Marvelletes de plantão que defendem os filmes de super-heróis. Ok, eu adoro Batman e seus filmes, por exemplo, o problema é esse culto vazio a efeitos especiais a la Transformers que transforma o ato mágico de ir ao cinema numa mera rodada de cerveja. Todo mundo tá permitido de gostar e ver o que quiser. Agora, Marvel não é cinema, I'm sorry. E assim como Chaplin se rendeu ao cinema falado, Scorsa acabou tendo de se render ao streaming com seu novo filme, O Irlandês. E reza a lenda que o Amazon Prime possui um acervo interessante (do que eu já ouvi dizer). 

A pergunta é: teremos sempre de pagar (e caro) para consumir cultura de qualidade? Digo, além de já pagarmos internet e televisão em casa, mais ainda por serviços de qualidade duvidosa que no fim não nos oferece uma variedade decente?

Até mesmo os streamings, se são mesmo o futuro como se dizem ser (eu não gosto nem assino nenhum, beijos e abraços Netflix aka GadoFlix), por que não melhoraram seus acervos com mais variedade, ou deixam coisas boas no ar ao invés de sempre retirar e trocar tudo toda hora, assim como também a TV Paga que hoje é tão propagada nas casas do mundo e mantém uma qualidade péssima de programação? Eu amo As branquelas mas não três vezes por dia, e por que não mostramos mais Quanto mais quente melhor, do Billy Wilder, que inspirou aquela bagaça? Onde estão os clássicos que passavam até mesmo na Sessão da Tarde ou sessões de madrugada?


Como já dizia o finado Brizola: tudo que a Globo apoia, seremos contra; e tudo que a Globo é contra, seremos a favor

E ainda puxando um pouco o gancho com novelas, o mercado de teledramaturgia e cia não difere muito. Muitas fitas permanecem nas masmorras da GloboO Canal Viva vem decepcionando gradativamente seus seguidores com péssima gestão, desrespeito com o público, escolhas e alterações bizarras e esquizofrênicas. Porém as escolhas manjadas de novelas dos anos 2000 ou sucessos "infalíveis" como Por Amor ou Vale Tudo, por melhores que sejam, só mostram que a audiência é mais importante do que resgatar clássicos pedidos pelo público há séculos. Corre o boato de que nem a própria Globo possui muitas novelas na íntegra por desleixo na preservação de suas fitas, que estariam muitas danificadas. Eu ainda tenho esperança de ver pérolas raras como Jogo da Vida, Elas por Elas, e assim por diante... 

Como um amigo meu disse, se nós formos postar ou fazer homenagem a um artista das antigas hoje em dia, no Brasil, é capaz de levarmos processo por "uso indevido de imagem". A pergunta é: a questão do direito autoral e do uso de imagem vão até que ponto? Vamos deixar tudo cair no esquecimento em respeito a estas "regras", mas a que preço?

Ainda se aguarda que o Globo Play (entre outros streamings em voga, como o Disney+) honre a proposta inicial de disponibilizar clássicos no seu acervo, mas isso até o presente momento não aconteceu. Fica a pergunta se os streamings dos estúdios ou os manda-chuvas da Internet irão reformular suas grades em algum momento. Para o Viva é muito mais conveniente reprisar novelas mais recentes, já que com o passar dos anos as mais antigas ficam mais longínquas e o trabalho para burlar direitos autorais de músicas e questões de elenco/produção (outro problema que aflige até reprise de novela), cada vez menos necessário. Conveniente, isn't it ?

Rede de Intrigas, de Sidney Lumet, continua mais atual do que nunca sobre os bastidores da televisão e também do jogo de manipulação dos empresários e produtores sobre o pão e circo do entretenimento. O que importa é a audiência a qualquer preço. Escrevi sobre o filme aqui no blog, em 2016! 


Uma das produções mais emblemáticas não só dos anos 70 mas de todo nosso cinema nacional, Bye Bye Brasil de Cacá Diegues acompanhava a saga de uma trupe intinerante que percorre Brasil a fora para entreter populações isoladas e humildes, enquanto a televisão passa a ascender cada vez mais como grande veículo de entretenimento, derrubando as formas populares de espetáculo como o teatro mambembe e o circo. 
Brasil com S ou com Z ? 


Por fim, aproveito também para comentar dos livros biográficos de estrelas de cinema. Até meados dos anos 80, eram livros até populares, traduzidos e publicados no Brasil. Hoje em dia, são apenas livros antigos empilhados em sebos. Para os fãs de uma cultura fora das livrarias de shopping, dos ebooks, dos streamings, só sobram mesmo os sebos e os Mercados Livres da vida. E não reclamamos tanto, pois os preços podem ser bons, apesar dos eventuais roubos, e as raridades são inúmeras. Estas obras gritam para serem salvas do mofo. Porque parece que o mercado editorial, que nunca foi lá muito bom e hoje sofre uma crise que até questiona o futuro do livro em papel, esqueceu que estes astros um dia existiram ou são rentáveis para uma publicação. Lembremos também que as livrarias se encontram em crise financeira e fechando suas portas, como foi o caso da Fnac brasileira (aqui em Portugal ainda vai muito bem, obrigado), e a Livraria Cultura e Saraiva lutam para não decretar falência. Apesar de seus problemas e péssimas administrações, ainda poderiam ser bons pontos de encontro culturais. Poderiam. 

O novo sempre vem, Elis Regina e Belchior já cantaram. As locadoras não são mais viáveis, disso até nostálgicos como eu temos de admitir. Eu mesmo com o tempo parei de frequentá-las, mas quando elas fecharam fiz questão de comprar o máximo que pude das raridades de seus acervos, ou até filmes bobos a preços em conta. Talvez um dia eu ainda ouse e abra uma locadora/espaço cultural com todo meu acervo de livros e filmes que tenho, who knows... Eu negocio no momento fazer exibições dos meus DVDs no interior da Bahia, onde minha família reside e mantém a minha coleção (pois vivo hoje em Portugal). Mas foi de fato o fim de uma era, com o fim das locadoras. Já vejo por aí muitos VHS e aparelhos de videocassete a preços exorbitantes! 

Incrivelmente, uma mesma fita do filme Natal Branco, com Bing Crosby, estava por 100 reais no Mercado Livre. Na mesma época, numa locadora prestes a fechar no Estação Botafogo, no Rio, eu paguei pela mesma fita... UM REAL.

Que uma alternativa a esses espaços então se apresente, ou permaneceremos como Garbo no nicho da nossa reclusão.

O público brasileiro (ou em situação semelhante de pobreza cultural) sofre em demasiado pela questão dos idiomas, legendas e traduções. A barreira da legenda e do idioma, que até tem sido discutida nos últimos tempos com o filme Parasita, se mostra um problema. Ainda mais num país onde se diz que apenas 10% da população de 200 milhões de pessoas fala alguma coisa de inglês, mesmo com a globalização e o idioma bombardeado no nosso cotidiano diariamente. Infelizmente, falo até mesmo como professor de idiomas, é uma triste realidade o sucateamento da educação, mas eu pontuo também que muitas pessoas hoje em dia podem sim se aperfeiçoar e aprender idiomas de forma gratuita pois o que mais existe hoje é acesso na internet, por exemplo, para tal. 

A aula de inglês nas escolas é sempre deixada de lado tanto pelos cabeças das escolas/gestões públicas como pelos próprios alunos que nunca conseguem ou se importam de reter o Verbo To Be, seja na escola pública ou no curso particular pago pelos pais. Mas, o mundo marcha, os boletos chegam, tem de se trabalhar e no mundo moderno só importa o agora, o momentâneo. Prioridades, não é mesmo... As especializações podem sempre esperar, até que as oportunidades parem de vir e as requisições apareçam cada vez mais seletivas. Não que isso seja justo, pois nem todos tiveram as mesmas chances e alicerces, assim como toda a lógica deste nosso mercado de trabalho doentio, pois eu mesmo tenho diploma de universidade e falo línguas e ainda assim não sou favorito de nenhum RH. Mas continuando. Eu não tinha um inglês muito bom na adolescência, mas meu amor pelo cinema me fez querer ultrapassar essa barreira e vi muitos mas muitos filmes mesmo sem legenda, no Youtube por partes, às vezes até dublados em outras línguas... Ainda assim, por amor ao cinema, eu encarei e vi estes filmes. E aprendi muita coisa, hoje sou até professor de inglês. Hollywood foi uma escola melhor do que muitas escolas de inglês de ponta de esquina. Ok, posso ser um homem cis branco "privilegiado", mas nunca fui rico e do que eu quero eu tento correr atrás, às vezes com sucesso, outras não tanto. Eu sou um caso à parte, nem melhor nem pior do que ninguém, mas se formos esperar uma legenda ou um DVD cair do céu, é capaz de irmos ao caixão sem assistir ao que queremos. Logo, é mais cômodo vermos o que tá na nossa mão, seja no PC ou na Tv a cabo. E dublado, já que a tendência é cada vez menos legendas... 

Afinal, "quem lê hoje em dia?", diriam muitos cínicos seres midiáticos que nem se dão mais ao trabalho de escrever como o autor que vos fala.


Filme raro quase perdido de Bette Davis, Seed (John M. Stahl, 1931) é um dos filmes clássicos raros que até existem mas estão em cópias péssimas, sem nenhuma restauração, em coleções privadas, ou sitiados em acervos como o da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles). Provavelmente verão pouco a luz do dia. A versão inglesa de Monte Carlo Baby, mesmo tendo Audrey Hepburn no elenco, existe mas numa cópia péssima em alguma biblioteca.

Ninguém tem a obrigação de falar ou saber inglês, isso é certo. O acesso às obras no nosso idioma deveria ser mais difuso. Mas, nem tudo está perdido, I guess... Acho muito bom a existência de fóruns como o Making Off , o qual ainda é um alento para os fãs de cinema de arte, com tudo legendado e de boa qualidade (apesar de só ser acessível com convite). Esperamos que não seja fechado, já que testemunhei inúmeras quedas do site nos últimos tempos. Eu infelizmente vi o fechamento de muitos fóruns de cinema clássico pela internet e é triste dizer que as fontes estão secando, e nada está surgindo para repor este vácuo cultural. Os filmes permanecem todos no porão. 

O selo da Livraria Francisco Alves existe desde 1854 e permanece sendo a editora mais antiga em atividade no Brasil. Esta mesma coleção Presença lançou biografias como de Vivien Leigh, Lana Turner, Ingrid Bergman, Elizabeth Taylor. As autobiografias de Davis, The Lonely Life e This 'n That, nunca foram traduzidas ou lançadas no Brasil. 

Aqui dois links de listas de filmes clássicos hoje em Domínio Público: 

http://publicdomainmovie.net/

https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_films_in_the_public_domain_in_the_United_States



É tudo muito triste. Um salve para a quase finada cultura. E outro salve para a extinta memória.

Pedro Ferreira Dantas
2020

Update: Meu canal de filmes foi excluído. O Capitalismo venceu. E a Cultura, como sempre, perdeu.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Literatura árabe no cinema: as noites árabes através da lanterna mágica do Ocidente





Passados vários séculos desde a origem remota (árabe, indiana, persa e egípcia) dos contos d’As mil e uma noites, continua inegável a força inigualável do imaginário árabe a resistir e transcender a passagem do tempo. E é também, principalmente, um fato incontestável a importância dessa obra-prima mundial sobre a narrativa fantástica, que vem até os dias de hoje bebendo deveras da fonte inesgotável de magia, imaginação e pungência humana que a literatura árabe nos proporciona. Não só no âmbito literário, mas em outros meios como o cinema, uma arte ainda recente, a cultura árabe junto com suas personagens mais marcantes marca presença, nos mostrando tanto a influência da cultura oriental sobre a arte ocidental moderna, como também nos mostra a forma como a cultura ocidental enxerga e engloba a cultura do Oriente Médio. Trilhando um pouco nessa linha de análise, o presente trabalho seguirá através de algumas obras marcantes do cinema ocidental, em especial o cinema americano hollywoodiano e o cinema europeu.


Parte do histórico Manuscrito Galland, guardado na Biblioteca de Paris

          Lembremos que a presença da obra no mundo moderno ocidental floresceu a partir da publicação da obra traduzida para o francês pelo orientalista Antoine Galland em 1704, logo se transformando num clássico mundial. Já na língua inglesa, a tradução sem censuras de Richard Francis Burton, em 1885, viria à tona sob forte revolta do reinado vitoriano devido ao conteúdo forte da publicação, ainda tabus para a época. E então desde 1895, ano da ‘’invenção’’ do cinema, até os dias atuais, não são poucos os exemplares cinematográficos baseados nos contos das Mil e uma noites, desde adaptações mais fieis até as mais fantasiosas. Curiosamente, há diversos indícios de que as histórias mais famosas, adaptadas e relacionadas às Mil e uma noites, como o caso de Aladim, Simbad e Ali Babá, não estavam nos manuscritos antigos da coletânea, mas foram acrescentados na versão de Antoine Galland que se popularizou pelo Ocidente. Simbad parece possuir uma origem ainda mais remota que da primeira coletânea de histórias, enquanto Ali Babá e Aladim supostamente teriam sido narradas a Antoine Galland por um contador de história árabe de Alepo, e então acrescentadas aos outros contos. Estando presente na obra original ou não, estas histórias serviram como portas para adentrarmos no universo de magia e fantasia que apenas a literatura árabe poderia nos proporcionar, e que tanto serviu para os intentos do cinema de criar romance, aventura e espetáculo.


Da série imaginário da tela prateada by George Méliès

         Os filmes ocidentais desde cedo já mostravam o fascínio exercido pelo Oriente. Um dos pioneiros do gênero foi feito em 1905 por George Méliès, um dos primeiros realizadores do cinema, famoso por seu Viagem à Lua (1902). Até os anos 20, enquanto ainda se consolidava o cinema e sua estrutura narrativa ainda era ‘’experimental’’, os diretores pioneiros D.W. Griffith e Cecil B. DeMille em seus épicos como Intolerância (1916) e Cleópatra (1934) já demonstravam o quanto o imaginário oriental dava ao Ocidente a ideia de ‘’sexy, estranho, excessivo, exótico’’, assim como o astro do cinema mudo Rudolph Valentino imortalizou sua figura ao encarnar O Sheik, clássico sucesso de 1921. Na Era de Ouro do cinema, especialmente entre 1920-1950, dois exemplares são considerados até hoje obras-primas do cinema mundial: as duas versões de O ladrão de Bagdá.

De amante latino, árabe, até mesmo russo - o eterno e lendário Valentino

O fascinante As Aventuras do Príncipe Achmed, de 1926, é considerado o filme de animação mais antigo de que se tem notícia.

Um dos maiores clássicos da Era Muda de Hollywood

Fairbanks, o matinee idol dos anos 1920

          No quesito de cinema como ‘fábrica de sonhos’, as duas adaptações, totalmente carregadas da essência das Mil e uma noites, são muito bem-sucedidas e da mais alta qualidade artística, narrativa e cinematográfica. A primeira versão data de 1924, dirigida por Raoul Walsh e estrelada pelo ator Douglas Fairbanks como Ahmed, o Ladrão de Bagdá do título, que ao encontrar uma corda mágica adentra no palácio do Califa para roubar tesouros, mas acaba se apaixonando pela princesa e decide conquista-la, tendo de enfrentar outros pretendentes e os invasores mongóis. A história é uma livre adaptação da coletânea; o filme é um belo exemplar do gênero capa-e-espada, cheio de cenas de ação, acrobacias e movimento por parte do atlético protagonista, que também estrelou heróis clássicos do cinema como Zorro e Robin Hood. O poder imagético do cinema mudo nos permite esquecer da ausência de som, e os efeitos especiais da época são muito bonitos, fazendo uso muito inventivo das figuras dos monstros, da corda mágica e do tapete voador, provando que os estúdios de cinema podem criar absolutamente qualquer coisa para contar uma história tão bem como Sherazade, mas com imagens filmadas. É claro que sabemos que Ahmed vai salvar e ficar com a princesa (e ainda voando no tapete mágico), mas queremos saber como, e essa é a grande sacada. Talvez seja a inventividade e criatividade na forma de contar histórias que aproxime a destreza narrativa do cinema com a obra-prima que é As mil e uma noites. Nos exemplares antigos isso fica ainda mais forte, pois com a ‘escassez’ de recursos, comparado a hoje, os artistas precisavam driblar as dificuldades técnicas, sendo muitas vezes muito mais bem-sucedidos do que os realizadores de hoje em dia que abusam dos efeitos especiais. O filme de 1924 começa e termina num cenário clássico de noite árabe, com uma frase moral nos céus: ‘’Happiness must be earned’’ ( ‘A felicidade deve ser conquistada’), uma interpretação livre de um trecho das Mil e uma noites traduzido por Burton: ‘’Seek not thy happiness to steal /'Tis work alone will bring thee weal /Who seeketh bliss without toil or strife /The impossible seeketh and wasteth life.’’ (‘Não busque a felicidade para roubar/ Seu trabalho sozinho irá lhe enriquecer/ Quem busca a felicidade sem trabalho ou conflito/ O impossível busca e a vida desperdiça’). 

Anna May Wong, atriz chinesa que fez história em Hollywood, apesar de estereotipada com papeis de vamps fatais. Brilhou com Marlenão Dietrich em O Expresso de Shanghai 

          A versão britânica de 1940 do Ladrão de Bagdá por sua vez se assemelha muito com a história consagrada de Aladim e sua lâmpada mágica, assim como a versão animada da Disney de 1992. Na primeira versão, Ahmed fazia suas peripécias sozinho, enquanto aqui o protagonista em suas aventuras conta com a ajuda de um gênio da lâmpada – fator mágico que a Disney utilizou para refilmar a ideia de O ladrão de Bagdá a sua maneira para encantar as crianças e o público em geral. Esse filme, com cores em exuberante Technicolor, cheio de fantasia, efeitos especiais vencedores do Oscar e personagens cativantes e engraçados, continua sendo até hoje uma das maiores referências em adaptações audiovisuais das Mil e uma noites, reunindo praticamente todos os elementos característicos do gênero.

Uma amostra das sequências mágicas com riqueza de efeitos especiais na versão de 1940 de O Ladrão de Bagdá

         Uma diferença crucial entre as duas versões de Ladrão de Bagdá: nesta de 1940, o ‘ladrão’ e o ‘príncipe’ são personagens diferentes, e não o mesmo personagem. E mais: a história é contada pelo recurso de flashback, relembrando o estilo das Mil e uma noites. No filme, Jaffar coloca o príncipe Ahmad numa prisão para mata-lo e assumir o reino. Lá o príncipe conhece um jovem ladrão chamado Abu (no filme da Disney, a figura de Abu se tornou o macaco amigo de Aladdin). Ao fugir, o príncipe se apaixona por uma linda princesa, que também é desejada por Jaffar, e por isso o malvado Grão-Vizir deixa Ahmad cego e Abu transformado num cachorro. Jaffar obriga que a princesa se case com ele para só então desfazer o feitiço, e a moça assim aceita. Os dois embarcam no navio de Jaffar, mas Abu consegue embarcar junto. Ele chega numa praia em terra firme, recobra sua forma humana e consegue encontrar a lâmpada junto de um gênio que lhe concede três desejos: saciar a fome, localizar seu amigo Ahmad e fazer com que os dois fiquem juntos e felizes. Ahmad, já voltando a enxergar, reencontra a princesa, mas Jaffar manda que ambos sejam decapitados. Nesse momento clímax chega Abu num tapete voador para matar Jaffar com uma flechada. Assim a paz volta a reinar em Bagdá, Ahmad assume o trono e vive feliz para sempre com sua amada princesa.

Maria Montez (1912-1951), a rainha das Arábias da Old Hollywood

          Sabu, ator de origem indiana que vive o Abu de O ladrão de Bagdá, junto com a bela atriz dominicana Maria Montez, seriam estrelas ‘’exóticas’’ recorrentes nas produções das arábias que marcaram o cinema clássico hollywoodiano. Montez, considerada na época a ‘rainha do Technicolor’, participou da versão de 1942 para o cinema de As mil e uma noites. Apesar de ter sido um grande sucesso, a história do filme é um típico clássico americano em que nada se assemelha com a obra original, e deve mais à imaginação da Universal Pictures do que às histórias clássicas originais. Para ilustrar: sem monstros ou magia, e bem longe da figura da rainha contadora de histórias, aqui Sherazade (Montez) faz parte de uma trupe de atores, e fica dividida entre dois irmãos que disputam o poder político da região e o seu amor.


O ator indiano Sabu (1924-1963), com Jean Simmons, no filme Narciso Negro

          No fim, o triunfo do filme, longe da ideia de adaptação fiel, é brincar com estereótipos da cultura árabe para contar uma boa história, como reunir os personagens clássicos como Sherazade, Ahmad, Simbad e Aladim numa trama colorida e cheia de entretenimento, que garantiu um dos maiores hits da Universal nos anos 40, que resolveu apostar em mais produções rasamente baseadas nos contos das Mil e uma noites, como Ali Babá e Os Quarenta Ladrões de 1944, novamente estrelando Maria Montez e Jon Hall.  Novamente distante do conto original, o enredo de Ali Babá trouxe mudanças ao incluir a invasão mongol liderada por Hulagu Khan na Ásia – Ali seria o filho do califa, que é morto pelos mongóis, mas ele consegue fugir e descobre a grande caverna dos quarenta ladrões, se junta à luta contra os mongóis e se apaixona pela princesa prometida à Hulagu Khan. Uma das razões para que o conto não fosse adaptado fielmente talvez se deva ao fato de que são cometidos 42 assassinatos durante a história original: o primo de Ali Babá, os quarenta ladrões do título e seu líder vingativo; e para completar, a maioria deles é morta dentro dos jarros onde eles se escondiam, sob jato de azeite fervente. Talvez as plateias não estivesse prontas para tamanha carnificina.

Xaropadas e estereótipos à parte, entretenimentos de qualidades - e de cores!! 

          Ainda no ciclo das Arábias da época, antes do ocaso do gênero, vieram mais alguns clássicos. Nos estúdio da RKO: Simbad e o marujo, de 1947, estrelado por Douglas Fairbanks Jr. e Maureen O’Hara, uma versão pirata capa-e-espada mistura da história de Simbad com a proposta de O ladrão de Bagdá. Na Columbia Pictures, As mil e uma noites também foi filmado em 1945, mas a história é novamente a premissa clássica de Aladim e a lâmpada mágica, com uma única diferença que aqui o herói é vivido por Cornel Wilde e o gênio da lâmpada é vivido por uma atriz: Evelyn Keyes. Dando fim ao ciclo, de volta à Universal Pictures, A espada de Damasco de 1953 é um exemplo curioso. Estrelado por Rock Hudson e Piper Laurie, o filme trazia novamente os contos clássicos das Mil e uma noites, em especial a figura de Aladim contra Jaffar e apaixonados ambos por uma princesa, mesclados com o mito do Rei Arthur e a sua espada Excalibur – ao invés da lâmpada, o herói faz uso de uma espada dotada de força mágica para poder derrotar o Grão-Vizir.

A Espada de Damasco

A irlandesa Maureen O'Hara, mais do que a parceira das telas de John Wayne, se tornou uma das rainhas do Technicolor e musa das matinês de piratas e sheiks com sua beleza ruiva e exótica

Antes mesmo de Jeanne é um Gênio com Barbara Eden, Evelyn Keyes foi o gênio da lâmpada do heroi Cornel Wilde em A Thousand and One Nights

         Por fim, cinema e literatura árabe se encontram de forma complexa e fascinante nas mãos do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini nos anos 70. Longe da fantasia mágica, porém ilusória de Hollywood, nessa época agora mais liberal e ousada para o cinema, o diretor teve a chance de filmar os contos das Mil e uma noites de forma muito mais realista e fiel ao teor sexual, curioso e cômico das histórias originais. As Mil e uma noites (título original Il fiore dele mille e una notte) é considerada a melhor e mais inteligente adaptação da antologia árabe. Talvez justamente por ser o filme que mais preserve a essência erótica e a ideia de ‘’história dentro da história’’ que é própria do livro – fazendo do roteiro muito rico, pois segue de uma história para outra que está dentro da próxima, conseguindo fechar todo o ciclo de histórias no final da projeção.


         A história principal é a de Nuredin, um jovem inocente, que se apaixona pela escrava Zummurud, que o elege para ser seu senhor. Ela cose uma bela peça de tecido e pede para que Nuredin venda para alguém que não tenha olhos azuis. Nuredin acaba vendendo a peça para o homem de olhos azuis, um dos algozes da escrava, que consegue raptá-la. Zummurud consegue fugir e, se fazendo passar por homem, chega a um reino distante que a elege rei do lugar, sem saber seu verdadeiro sexo. Nuredin procura o filme inteiro pela sua amada, trombando então com várias figuras baseadas nos contos árabes clássicos, em especial: um homem (Aziz) que se apaixona por uma misteriosa mulher no dia de seu casamento, e a partir disso, não havendo casamento, sua prima/esposa prometida o ajuda a conquistar a outra mulher, numa total sacrifício de amor, até que ela morre e o homem se arrepende de não ter dado valor a sua mulher prometida; e também a história de um homem que tenta libertar uma mulher das garras de um demônio. Homem e mulher estão apaixonados, mas o demônio insiste: corta os braços e as pernas da moça. Mas não adianta: ‘’ela ainda consegue fazer amor com os olhos’’. Essa última é a síntese da ideia que Pasolini quis passar na sua adaptação da obra, extremamente autoral: esse filme é o último de sua ‘’Trilogia da Vida’’ (junto com Decamerão e Os Contos de Canterbury, outras antologias históricas e mundialmente aclamadas), e nesses seus projetos o diretor italiano quis ir contra a marcha do consumismo desenfreado e do falso poder do dinheiro e do status vigente, expondo claramente sua ideia que a verdadeira força da vida vinha do corpo do homem, de sua entrega no ato sexual, do orgasmo. Isso fica bastante exemplificado na constante ‘orgia’ de atores nus praticando sexo quase explícito, mas longe de ser gratuito, o filme quer passar a beleza da vida e dos atos de sentimentos genuínos entre as pessoas. Sem artificialismos e estrelas de cinema, as pessoas são reais e seus corpos também. Em Pasolini, assim como em Foucault, todo sistema de poder é mostrado como hipócrita e controlador social. Somente através do gozo é que o homem alcança sua liberdade plena, assim o prazer dos corpos toma uma atitude política e engajada, como resistência ao controle social e ao status quo cheio de hipocrisia. Se mesmo como um filme de época a obra consegue se mostrar uma crítica moderna e pungente, não se distancia ele do teor desencantado das histórias de Sherazade, que pareciam denunciar de alguma forma a decadência do mundo árabe, extremamente patriarcal e repressor, além de exibir a ruína das relações humanas.


        Esses elementos aqui expostos são só alguns que tornam o filme de Pasolini, mesmo que não perfeito, digno de ser visto e apreciado, ainda mais pelo fato de ter sido gravado em locações no Nepal, Iêmen e Eritreia, e não mais nos estúdios de Hollywood ou Cinecitta na Itália. A fotografia é exuberante e faz o espectador se sentir dentro das Mil e uma noites, em tempo e em espaço, pois de fato a locação é quase um personagem vivo das histórias. Claro que, findadas as narrativas paralelas, Nuredin se reúne novamente com sua amada Zummurud. Ele é capturado pelo ‘rei’ e é obrigado a dormir com o mesmo. Já conformado com seu destino cruel, Nuredin descobre que o rei na verdade é a sua escrava amada. Se no Ladrão de Bagdá a ideia era da ‘felicidade como algo a ser conquistado’, a grande ideia das Mil e uma noites usada por Pasolini é: ‘A verdade não reside apenas em um sonho. A verdade reside em muitos sonhos’. A própria coletânea das Mil e uma noites nos leva a essa conclusão, e o filme de Pasolini apenas a reforça com eloquência.

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          O gênero clássico de filmes das Arábias continuou bastante popular por muitos anos, sendo muito televisionados no Brasil na antiga Sessão da Tarde dos anos 70 e 80. Aladdin da Disney se tornou um dos maiores clássicos da animação e está prestes a ganhar uma nova versão live-action. Para completar, no mundo dos filmes é claro ainda que o universo oriental permanece fascinando gerações e plateias de todo o mundo. Com estudos mais aprofundados e maior informação ao longo dos anos, as pessoas estão podendo conhecer o mundo árabe mais profundamente, longe dos estereótipos. Mas o que mais chama a atenção nessa linha de estudo é o triunfo atemporal do ato de contar histórias. O cinema e Sherazade mantem uma coisa em comum: estar sempre tendo que fazer uso da criatividade para atrair a atenção do seu público. Sherazade, na sua fala oral e agora também registrada em livro, queria salvar sua vida e lutar contra o patriarcado vigente, lutando pelas suas. O cinema, na sua linguagem audiovisual, não deixa de beber da fonte das obras fundadoras das narrativas mais consagradas e inspiradoras, e com um público cada vez mais exigente, essa forma de arte com seus melhores exemplares está buscando resistir à passagem do tempo sem deixar de perder o seu maior dom: entreter seu público com uma boa história. Por mais realista que seja, a fantasia estará sempre ali. Seja nas Mil e uma noites ou em um filme: não importa se soubermos o fim da história, queremos ver o desenrolar dessa história, e assim seremos sempre bons leitores – e espectadores. Essa, sim, é a grande aventura.



O presente trabalho foi realizado por mim durante a graduação de Letras na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) para a disciplina de Introdução à Literatura Árabe, ministrada pelo Profº Mamede Mustafa Jarouche.


BIBLIOGRAFIA

AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

GARDNIER, Ruy. As 1001 Noites. CONTRACAMPO Revista de Cinema. Acessado em <<http://www.contracampo.com.br/60/1001noites.htm>>

MALTIN, LeonardLeonard Maltin's Movie Guide - 2011 Edition (em inglês). Nova Iorque: New American Library, 2011.

MENESES, Adélia Bezerra de. Sherazade ou do poder da palavra. In: Do poder da palavra – Ensaios de Literatura e Psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 39-56.

RUBIRA, Fabiana. A sultana Sherazade, tecelã das noites, e a narrativa à beira do precipício. In: Estudos da Ásia: Artes, tradução e identidades culturais. FFLCH/USP, 2017, p. 37-56.

ZOTENBERG, M. Herman. Alguns manuscritos das Mil e uma noites e a Tradução de Galland. Tradução: Gaby Friesskirsch. Tiraz, Revistas USP, 2006, pg. 195-233.

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