segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

120 Anos de Walt Disney: O Homem e o Mito (E Uma Jornada pela Animação Clássica no Cinema)

 


"Espero que a gente não perca de vista uma coisa - que tudo começou com um rato." 

Walt Disney
(1901-1966)

PRÓLOGO 

No último 5 de dezembro de 2021, Walt Disney completou simbolicamente 120 anos de seu nascimento. E no dia 15 de dezembro se completaram 55 anos de seu falecimento. 

Esse texto vem como uma homenagem ao seu legado artístico e cultural. Também para desmentir muita fofoca e ideia errada que o grande público tem dele ou que a mídia propagou por décadas. Não, Walt não era antissemita. E ele NÃO foi congelado depois de morto. 

Através do meu post, quero mostrar as diversas nuances desse que é até hoje uma das figuras públicas mais famosas e celebradas do mundo, criador e dono de um império fantástico, pioneiro da animação, visionário dos parques temáticos, enfim... Mais do que isso tudo, apresento o homem por trás do mito. 




O biógrafo Neal Gabler, autor de Walt Disney - O triunfo da imaginação americana (publicado no Brasil pela Novo Século), escolheu duas palavras-chave para definir Walt. A primeira: escape, em inglês fuga ou libertação. Desde criança Walt já vivia num mundo à parte. Ele cresceu na região interiorana do Meio Oeste americano, numa terra de fazendas, natureza, animais, simplicidade e costumes rústicos. Disney também desde cedo nutriu uma verdadeira paixão por trens, algo que ele levaria adiante na construção de trenzinhos e depois nos seus projetos grandiosos da Disneyland. Enfim, mesmo após o sucesso e dono de um império, Walt nunca abriu mão de seus valores de rapaz do campo. E através das suas animações e fantasias, ele procurava uma válvula de escape, a criação de um mundo de inocência, fantasia e eterna juventude, como um Peter Pan que se recusava a crescer no coração. E assim era Walt Disney: um homem criança.





O segundo termo para defini-lo é controle. Para administrar esse aglomerado de sonhos e fantasias e enfim tornar tudo isso realidade, Disney se tornou uma pessoa extremamente perfeccionista, por vezes controlador e até mesmo tirano. Ciente desde uma idade precoce que a vida real é insuficiente, frustrante, e que não temos total domínio sobre nosso destino, ou que muito do que quisermos e almejarmos nos será eventualmente negado, Walt procurou no seu trabalho e nas suas criações uma forma de controle. Já que ele não podia controlar o mundo ou o fluxo da vida, ele podia controlar suas invenções, seus desenhos, seu estúdio, seus parques... Enfim, ser dono do mundo criado por ele mesmo: o mundo Disney. 




WALT ANTES DE MICKEY: ORIGENS, INFÂNCIA E JUVENTUDE NO MEIO OESTE AMERICANO


Walter Elias Disney era o seu nome completo. Disney é um nome inglês de origem francesa, de uma cidade da Normandia chamada Isigny. Então, "D'Isigny" (de Isigny) acabou com o tempo virando Disney. 


Walt com um ano de idade

Elias era o nome de seu pai, nascido no Canadá (então ainda província da coroa britânica). Os ancestrais de Disney se espalharam pela Europa, mais especificamente na Irlanda. A mãe de Walt, Flora Call, nasceu em Ohio e tinha ascendência alemã e inglesa. 


Os pais Elias e Flora


O sagitariano com ascendente em Virgem e lua em Libra Walt Disney nasceu no dia 5 de dezembro de 1901 na cidade de Chicago, estado de Illinois. Walt era o quarto de cinco filhos - seus irmãos mais velhos eram Herbert, Raymond e Roy, e em 1903 nasceu a irmã caçula Ruth.


Walt e sua irmã Ruth quando crianças


Mas não seria Chicago, e sim Marceline, cidade do Missouri, que marcaria para sempre o imaginário de Walt. A família se mudou para lá quando ele ainda tinha quatro anos, em 1906. Walt nunca se esqueceu dos pequenos prazeres vividos em Marceline: o contato com os animais e a natureza, as guloseimas, a vida familiar, e com certeza o fascínio pelos trens. Afinal de contas, ele morava perto da linha férrea Atchison, Topeka and Santa Fe Railway Anos mais tarde, Walt exaltaria nos seus trabalhos a vida simples no campo, o amor aos animais e preservação da natureza. Nos parques Disney estaria sempre buscando fonte de inspiração em coisas que viu ou viveu em Marceline. 


A rua principal da Disneyland foi inspirada na rua principal de Marceline, MO


O Walt Disney Hometown Museum na cidade de Marceline 


Antigo percurso com conexões da linha férrea Atchinson, Topeka and Santa Fe Railroad


"Acho que sempre fui apaixonado por trens. Quando era um menino pequeno que vivia em uma fazenda perto de Marceline, Missouri, eu tinha uma única reivindicação à fama: meu tio Mike era engenheiro no trem de acomodação de Santa Fe que circulava entre Marceline e Fort Madison. Isso era algo para me gabar com meus colegas de escola em uma época em que as ferrovias se destacavam no esquema das coisas e as locomotivas a vapor eram formidáveis e empolgantes."


Na infância começou também a sua paixão por desenho. Seu primeiro "trabalho" como desenhista foi ainda criança, ao desenhar o cavalo de um vizinho médico aposentado. Passou a desenhar e colorir habilmente com giz de cera e aquarelas. Algumas de suas artes chegaram a ser vendidas e expostas na sua vizinhança. No fim de 1909, Walt começou seus estudos escolares junto com sua irmã Ruth. 

A família Disney deu adeus a Marceline em 1911, quando se mudaram para Kansas City, a cidade mais populosa e extensa do Missouri. Lá Walt cresceu e se tornou um homem, mas o encanto da infância inocente em Marceline ficava já para trás. 

A paixão por trens continuou firme e forte, no entanto. Seu tio, Mike Martin, era um engenheiro de trem na linha entre Fort Madison, Iowa e Marceline. Mais tarde, Walt trabalharia como vendedor de jornal e guloseimas na linha de trem, não tanto pelo dinheiro e trabalho em si, mas para poder viajar livremente naquele trem que ele gostava tanto.


As caricaturas e quadrinhos de Ryan Walker inspiraram o menino Walt no desenho. As ilustrações apareciam no Appeal to Reason, um jornal de extrema esquerda que seu pai Elias assinava 


Podemos até questionar se Walt virou um republicano feroz na maturidade para ir contra o viés de esquerda do pai no passado. Walt votou no Partido Democrata até meados dos anos 40, depois migrando para o Republicano por decepções pessoais e com certeza pelo seu ódio aos comunistas e aos sindicatos. Mas enfim, eventualmente o próprio Elias, uma vez eleitor do partido socialista, tornou-se um conservador também. 

Foto de família (Walt criança no meio)


Walt tinha uma relação tranquila com sua mãe Flora, mas com seu pai Elias era bem diferente. Não se sabe bem por que, talvez pelo gênio artístico do menino, mas desde a infância de Walt houve uma antipatia entre pai e filho que se estenderia até a idade adulta e velhice de ambos. Walt levava os piores castigos e surras do pai Elias, não só por traquinagens típicas de criança mas até por situações triviais. E Walt fazia questão de fazer pior depois ou desafiar o pai. Já adulto, Walt falaria do pai em termos agridoces ou até amargos. Mas de qualquer forma, Elias pensava no bem-estar de sua família sempre em primeiro lugar, e ele nunca se opôs aos sonhos artísticos do filho, mesmo não achando que aquilo daria alguma estabilidade financeira. Walt seguiria seu instinto mesmo assim.



Por mais que tenha enaltecido valores familiares nas suas produções futuras, a vida doméstica de Walt nem sempre foi das melhores, em particular com seu pai. Então, o garoto foi procurando refúgios fora de casa. Na escola, Disney se tornou amigo do xará Walter Pfeiffer. Walter era de uma família de fãs de vaudeville e cinema, sendo ele próprio um frequentador de shows e espetáculos. Através do amigo, Walt Disney começou a se interessar pelo mundo do teatro e do cinema. A tal ponto a amizade cresceu e junto também a afeição de Walt pela família do amigo que ele passava até mais tempo com os Pfeiffer do que em sua própria casa. Walt e Pfeiffer montavam esquetes e pequenas apresentações, imitando figuras célebres como Charlie Chaplin e Abraham Lincoln. 

Os amigos Pfeiffer e Disney na infância


Disney era um aluno regular, nem primeiro da turma e nem rebelde. Um garoto afável e gracioso que fazia amizades facilmente. Ele chamava a atenção na escola pelo seu talento nos desenhos. Ainda criança ele já dava sinais do animador que viria a ser - em pequenas artes como fazer desenhos em um caderno e passar as folhas rapidamente, criando imagens em movimento. 

Infelizmente o desempenho escolar de Walt foi prejudicado quando começou a trabalhar como entregador de jornal, após o seu pai adquirir uma rota de entrega de dois periódicos de Kansas City. Walt e o irmão Roy tinham que acordar às 4 e meia da manhã e entregar muitos jornais antes do horário da escola, e ainda depois da escola, já quase no fim do dia, tinham que entregar mais jornais. Walt acabava dormindo na aula e tendo notas ruins, mas ele continuou entregando jornais por mais de seis anos, até meados de 1917. E de certa forma, tinha orgulho de seu trabalho. 


Com sua família na infância


Já adolescente, com 16 anos, Walt começou a estudar desenho. Ele também começou a fazer aulas de sábado no Instituto de Arte de Kansas City e ainda um curso a distância (por correspondência) de desenho animado. O pai Elias comprou ações numa fábrica de geleias de Chicago e assim, novamente, a família toda se mudou para Chicago, cidade natal de Walt.


O adolescente descartou a ideia de trabalhar com o pai no ramo de geleias. Walt Disney estava determinado: ele queria ser um animador. Naquela época a área de animação ainda era muito primitiva, com poucos recursos e materiais, menos ainda livros e conteúdos sobre o assunto. Mas Disney foi atrás de tudo o que estava ao seu alcance para se aprimorar na área e realizar os seus sonhos. Além da escola e estudos como autodidata, o jovem incansável frequentou aulas noturnas na Chicago Academy of Fine Arts.



Walt fez o colegial na McKinley High School em Chicago, se inscrevendo em aulas de desenho e fotografia. Lá também foi o cartunista do jornal da escola, desenhando especialmente tirinhas patriotas. Era época da Primeira Guerra Mundial. 

Carta com desenhos de Walt na época que serviu na Cruz Vermelha na Europa, 1919. Aqui ele escreveu direitinho, mas por toda a vida ele teve problemas com a ortografia das palavras (risos)


Na metade de 1918, Walt abandonou o colegial e tentou se alistar no exército, mas foi rejeitado por ser considerado jovem demais. Para burlar a questão da idade, ele forjou a data de nascimento na sua certidão e então foi selecionado pela Cruz Vermelha para dirigir ambulâncias na França. Bad timing: Walt chegou na França em novembro, após o armistício. Mesmo com o fim da guerra, ainda havia muito trabalho a ser feito pela Cruz Vermelha. Disney aproveitou esse tempo na sua ambulância para fazer desenhos e até vender, alguns tendo sido publicados no jornal Stars and Stripes. Walt foi uma das milhões de vítimas da gripe espanhola do final da década de 1910, mas conseguiu se recuperar sem transtornos. 

Em 1918, na época que serviu na Cruz Vermelha


Walt voltou para a América em outubro de 1919. De volta a Kansas City, passou a trabalhar como aprendiz no Pesmen-Rubin Commercial Art Sudio; além disso ele ganhou uma bolsa no Instituto de Arte da cidade. Nessa época de trabalho no estúdio Pesmen-Rubin, Walt se tornou amigo do colega animador Ub Iwerks, com quem trabalharia nos anos seguintes em diversos projetos que falaremos mais adiante. 

Com Ub Iwerks, ainda nos tempos de Kansas City. Os dois juntos criariam Mickey Mouse


Os dois jovens se uniram num negócio de artes chamado Iwerks-Disney Commercial Artists, mas não durou muito tempo por falta de clientes e demanda. Disney achou melhor parar o negócio para ganhar dinheiro trabalhando na companhia de publicidade Kansas City Films Ad Company. Iwerks depois seguiu o amigo e foi trabalhar na empresa também. Naquela época, a companhia (assim como muitas produtoras daquele tempo) estava produzindo comerciais animados com a técnica básica de recortes: as animações eram feitas de forma plana e estilo stop motion, com cenários e personagens feitos de materiais como papel, papelão, tecido ou até mesmo fotografias. 


Walt estava mais interessado na animação hoje considerada tradicional (2D) que é a animação desenhada à mão quadro por quadro em celuloides ou superfícies do tipo, depois fotografadas por uma câmera e editadas, adquirindo movimento e sincronia (som e cores também anos depois). 

Uma pintora de células animadas já nos anos 40, na produção de Pinóquio 


Não havia muito material disponível sobre animação à mão naquele tempo, mas Disney resolveu pôr a mão na massa: na sua garagem, com um livro sobre animação e uma câmera, ele começou a fazer experimentos. 


Cartão de visitas de Walt Disney como cartunista, circa 1921


Empolgado com as animações feitas à mão, Walt Disney resolveu abrir o seu próprio negócio de animação. 


Mutt and Jeff (acima) e Koko The Clown (abaixo) foram algumas das inspirações animadas de Walt - ele preferia animações desenhadas ao invés do estilo stop motion


Era o começo da década de 1920, e Walt então criou a sua primeira empresa de animação: a Laugh-O-Gram. Inicialmente ele se juntou ao seu colega de trabalho na Film Ad Co., o cartunista Fred Harman, que ficaria famoso pelos seus quadrinhos Red Ryder. O principal cliente desse novo negócio era o Newman Theater da cidade, e lá foram projetados os primeiros seis curtas animados, que ficaram conhecidos como "Newman's Laugh-O-Grams" - Disney se baseou em contos de fadas de Esopo modernizados nesses primeiros trabalhos. Em 1921, com o sucesso desses curtas, Walt estabeleceu o Laugh-O-Gram Studio e contratou mais profissionais para trabalhar com ele, como Hugh Harman, Rudolph Ising e o amigo Ub Iwerks. 


Basicamente os Laugh-O-Grams eram historinhas baseadas em contos clássicos ou enredos cotidianos cômicos para entreter a população da cidade. Mas esses curtas simples e até meio caseiros não renderam o suficiente para manter o estúdio funcionando. Walt teve a ideia de filmar um projeto mistura de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrollcom um mundo fantástico de desenhos animados. Ele seria um pioneiro em misturar animação com pessoas reais (live action), e contratou uma menina de Kansas City chamada Virginia Davis para interpretar Alice, com aprovação dos pais dela. A ideia resultou em Alice's Wonderland, filme de um rolo e 12 minutos de duração. Nele é possível ver Walt como ele mesmo no seu estúdio interagindo com a menina e mostrando a ela os personagens animados no início. 

Em 1923, na época da Laugh-O-Gram, mexendo em uma câmera Pathé


Com Virginia Davis no curta Alice's Wonderland (1923)


Mas a ideia de Alice's Wonderland veio tarde para salvar a Laugh-O-Gram. Infelizmente por inexperiência, pouco retorno e muitas despesas, Walt encarava um de seus primeiros fracassos no início da carreira: em 1923 ele foi à falência com o seu estúdio. Por um bom tempo viveu de empréstimos de amigos e familiares, e até da boa vontade de estranhos para comer. A família Disney já havia se dispersado, e Walt se viu sozinho nesse período em Kansas City. Nas noites solitárias dentro de seu estúdio, uma de suas poucas companhias, segundo ele, era um rato que sempre rondava o lugar. Walt o considerava um amigo simbólico - e talvez tenha sido uma de suas primeiras inspirações para o personagem Mickey Mouse alguns anos depois (ou foi Walt apenas enfeitando histórias de sua vida, o que era muito comum). 

O prédio antigo da Laugh-O-Gram hoje está reformado e é uma atração histórica em Kansas City


Porém, Disney nunca foi conformista ou de chorar pelos cantos. Um dos mantras do sagitariano era "seguir sempre adiante", e o fracasso de certa forma o tornava ainda mais persistente na busca de seus objetivos. Assim, confiante no seu potencial e no seu projeto de Alice, Walt Disney vendeu sua câmera, pegou seus poucos pertences, roupas humildes (vestindo um casaco cardigan típico seu), o rolo do filme de Alice (quase todo editado e produzido por ele mesmo), materiais de animação, e partiu num trem rumo a Hollywood, Califórnia em julho de 1923, aos 21 anos. Poucos de seus conhecidos imaginariam que ele estava no caminho certo e perto de começar a fazer história. 

Apesar dos fracassos, Walt nunca pensou em desistir dos seus sonhos e seguiu adiante. “Todos os nossos sonhos podem se tornar realidade, se tivermos a coragem de ir atrás deles.”


No início, ele pensava em ser um diretor, ou começar como qualquer coisa em algum estúdio de cinema. Ninguém quis saber dele para nada. E então ele voltou para as animações. 

Felizmente, após várias rejeições, uma distribuidora de Nova York, Margaret Winkler, se interessou muito por Alice's Wonderland e ofereceu um contrato com Walt para a continuação da série de filmes com a mesma personagem a serem distribuídos nos circuitos comerciais. A atriz mirim Virginia Davis se mudou para Los Angeles com a família para gravar alguns dos filmes seguintes como Alice, sendo depois substituída por Margie Gay, Dawn O'Day (que depois virou estrela sob o nome Anne Shirley) e Lois Hardwick. A série de curtas de Alice terminou em 1927. 


Antes do Mickey, o Gato Félix (criação de Otto Messmer e Pat Sullivan) era o grande astro dos desenhos animados na época do cinema mudo. Com a transição para o cinema falado, o personagem entrou em declínio


Max Fleischer produziu desenhos de sucesso nos anos 1920 na série animada Out of the Inkwell. Ele foi o criador de muitos dos personagens mais famosos dos desenhos animados clássicos, como Koko The Clown, Betty Boop, Popeye, e também produziu as primeiras animações do Super-Homem


Walt viu que não conseguiria lidar com os negócios sozinho, especialmente a parte prática e burocrática, e pediu para que seu irmão Roy viesse para a Califórnia trabalhar com ele. Assim, os irmãos fundaram em 1923 o Disney Brothers Studios, que apenas em 1926 virou de fato o Walt Disney Studio. Roy Disney não viu problema algum no nome, afinal o irmão era o grande idealizador de tudo, enquanto Roy ficava à frente da parte financeira e burocrática do negócio. Walt sempre seria o idealista que sonha alto, ao passo que Roy era o realista que ia atrás dos financiamentos e acordos para tornar os sonhos do irmão em realidade. Apesar de eventuais desentendimentos, a parceria dos irmãos durou décadas, cúmplices e amigos até o fim da vida de Walt. 

Roy e Walt em 1923, na época da fundação do Disney Brothers na Kingswell Avenue. Três anos depois mudou de sede e virou o Walt Disney Studio


No início de 1926, já como Walt Disney Studios, a trupe se mudou para o número 2719 da Hyperion Avenue - começando a fase mais experimental, fraternal e criativa do estúdio. Aqui Walt com a equipe do estúdio e a atriz mirim Margie Gay, uma das intérpretes de Alice

A fase na Hyperion terminou no fim da década de 30, quando Disney montou o novo estúdio de Burbank, que funciona lá até hoje


Walt adotou o seu famoso bigode para parecer mais velho e sério, e talvez para adotar um visual mais "masculino". Afinal se tratava de um jovem de 20 e poucos anos lidando num ramo de chefões velhos ou durões... Mas até o fim dos anos 40 manteve um estilo casual e boyish, só depois nos anos 50 adotando o estilo mais formal de "tio Walt" pelo qual hoje ele é mais lembrado.

Ele era um simplório sonhador tímido e desajeitado fora das câmeras e dos estúdios. Podia deixar a barba dias por fazer. Gostava de ficar em casa com sua família, seus cachorros, e para comer gostava de chili com feijão e de sobremesa gelatina ou torta
 

Em 1925, ainda nos primórdios do estúdio, Walt conheceu Lillian Bounds. Natural do estado de Idaho, e vinda de um background familiar bem diferente de Disney, ela conheceu Walt quando trabalhava no departamento de tintas do estúdio. Eles tiveram um breve namoro e logo se casaram em julho daquele mesmo ano. Lillian ficou casada com Disney até a morte dele em 1966. A relação segundo ela foi feliz de modo geral, mas muitos diriam que era mais uma parceria de cumplicidade e conveniência do que uma relação apaixonada, e nem sempre foi um mar de rosas. Lillian não tinha interesse em cinema ou na cena de Hollywood, preferindo ficar em casa cuidando da casa e da família. Ainda assim, ela não aceitava sempre quieta a natureza controladora de Walt, o que poderia render brigas homéricas entre os dois e noites nas quais ele não dormia em casa, e sim no seu escritório do estúdio (uma rotina recorrente). 

Lillian foi casada com Walt por mais de 40 anos, até a morte dele em 1966. Casou-se novamente depois (novamente enviuvou), e faleceu em 1997 com 98 anos de idade


A primeira estrela animada da Disney não foi o Mickey, mas sim Oswald, O Coelho Sortudo - patrocinado pelo estúdio Universal. Margaret Winkler passou o contrato com Disney para seu marido, o produtor Charles Mintz. Apesar do sucesso dos desenhos do coelho Oswald entre 1927 e 1928, a relação entre Walt e Mintz foi bem tempestuosa.

Um dos curtas do coelho sortudo Oswald


Quando tudo parecia promissor, Walt foi traído por Mintz. Como era costume da época, o personagem pertencia ao estúdio distribuidor, no caso a Universal, e não aos criadores. Eles pensaram que poderiam seguir sem Walt, e pegaram para si não só o personagem Oswald, mas junto quase todo o staff de animação dos desenhos. E assim Disney perdeu o seu coelho Oswald. 

 O personagem Oswald continuou existindo, mas sem Disney. Não obteve muita repercussão depois e nunca saberemos como teria sido o futuro do personagem se Walt tivesse continuado a desenhá-lo


Mas seria Walt a rir por último não muito tempo depois. Ub Iwerks (que tinha ido para LA em 1924 trabalhar para Disney) permaneceu ao lado de Walt depois da treta com a Universal, e os dois criaram o camundongo mais famoso da história que dispensa apresentações: Mickey Mouse. 



Por pouco o rato não se chamou Mortimer. Das muitas versões sobre a origem do nome, a mais comum é que a esposa de Walt, Lillian, deu a ideia do nome Mickey. Anos depois Mortimer viraria o nome do rival de Mickey, em histórias onde os dois disputam a atenção de Minnie. 



É errado dizer que Walt Disney não era um bom desenhista. Sim, com os anos ele pararia de desenhar quase que completamente para ficar apenas no controle criativo das produções, o que lhe foi conveniente de certa forma. Foi de fato Ub Iwerks quem criou o desenho de Mickey, mas foi Disney que deu vida e alma para o personagem... E ainda deu a Mickey a sua voz. Na ausência de um dublador que o satisfizesse, Walt fez a voz do Mickey até 1946. No Youtube há um pequeno trecho de Walt gravando a voz do Mickey para um curta animado:




Sim, Disney se aproveitou muito do seu nome em destaque para tomar os créditos de tudo feito no seu estúdio  para si - enquanto os animadores e todo o pessoal dos bastidores ficavam em segundo plano. Mas, o fato é que sem a mente e a visão artística de Walt por trás dos desenhos, eles não teriam sido metade do que se tornaram. E de algumas décadas para cá, as mentes criativas dos bastidores têm ganhado mais crédito e reconhecimento.

A amizade entre Walt e Ub foi se deteriorando após o sucesso de Mickey e cia, pois Walt se tornava mais dominador e Iwerks não se sentia de fato valorizado. Certa vez uma menina pediu pessoalmente para Walt um desenho autografado de Mickey. Walt pediu que Iwerks desenhasse o rato, e ele só iria autografar o desenho no final. Ub ficou bravo e disse: "desenhe você o seu Mickey". E saiu.

Os primeiros desenhos de Mickey foram Plane Crazy e The Gallopin' Gaucho, ambos de 1928. Os dois projetos falharam em conseguir distribuição. Mas depois de assistir ao filme O Cantor de Jazz, Walt e seus amigos tiveram a ideia de adicionar som sincronizado aos desenhos, e dessa ideia nasceu Steamboat Willie, não o primeiro de todos mas certamente um curta pioneiro na animação com som sincronizado e também na produção de uma trilha sonora para o desenho. Hoje pode ser visto como uma animação primitiva ou datada, mas foi uma verdadeira revolução e um grande sucesso da época, sendo lançado oficialmente nos cinemas em 18 de novembro de 1928. O som era o futuro da indústria do cinema, e Walt seguiu a ideia certa no momento certo. Ele seria visionário e pioneiro inúmeras vezes durante a sua carreira. E mesmo que não necessariamente o primeiro de todos em determinada inventividade, Walt usaria a novidade a seu favor de forma eficiente, popular e nunca antes realizada. 


Steamboat Willie, o primeiro curta oficial de Mickey Mouse (1928)


Nos primeiros desenhos, Mickey era mais travesso, escrachado e politicamente incorreto. Mas com o passar dos anos, o personagem se tornou o bom moço certinho que vemos hoje em dia. O personagem virou um alter ego de Walt Disney, tão seu que poderia dizer facilmente "Mickey faria isso", ou "Mickey não faria isso" nas reuniões criativas dos curtas. E perguntado sobre seu sentimento pelo rato, Walt disse que amava mais o Mickey do que qualquer mulher que ele já tinha conhecido.

A primeira produção mesmo do Mickey foi Plane Crazy. Aqui o camundongo quer pilotar um avião e conquistar Minnie, além de tentar emular o aviador famoso Charles Lindbergh, piloto do mítico monomotor  Spirit of St. Louis

A partir de 1929, os estúdios Disney criaram a série Silly Symphonies, que perdurou por dez anos, até 1939. Num total de 75 curtas, os estúdios produziram os mais diversos tipos de curtas-metragens animados, que diferente dos curtas de Mickey e sua turma, não tinham continuidade ou ordem cronológica entre si. Através desses pequenos filmes, os animadores foram se especializando cada vez mais, experimentando novas técnicas e novas ideias a todo momento. Seriam então um prelúdio do que viria tempos depois nos longa metragens como Branca de Neve e Os Sete Anões em 1937. 

Para poupar trabalho individual e agilizar as produções, a partir dessa época o estúdio estabeleceu divisões de trabalho entre os desenhistas: os artistas principais fariam as partes-chave dos curtas, enquanto os desenhistas iniciantes (in-betweeners) fariam os desenhos complementares das cenas e dos personagens. 

O advento do storyboard não só facilitou o trabalho dos animadores como também ajudou a melhorar a qualidade e desenvolvimento das histórias


Como são muitos curtas da série Silly Symphonies, vamos mencionar apenas alguns dos mais marcantes:

A primeira Silly Symphony foi a moderna e arrepiante A Dança dos Esqueletos (The Skeleton Dance, 1929), dirigida por Disney e desenhada por Ub Iwerks


Flores e Árvores (Flowers and Trees, 1932) foi o primeiro desenho produzido na nova tecnologia three-strip Technicolor. Disney foi astuto o bastante para assinar contrato exclusivo com a Technicolor até 1935. O curta foi selecionado em 2021 para integrar o arquivo da Library of Congress como filme cultural e historicamente importante


Os Três Porquinhos (Three Little Pigs, 1933) é considerado um dos melhores e mais bem-sucedidos curtas animados de todos os tempos. Além de mais um Oscar de Melhor Curta Animado, o sucesso fez o estúdio aumentar o número de contratados e o investimento em um departamento de histórias


Playful Pluto (1934) é um dos mais lembrados no quesito comédia. Preston Sturges usou o curta numa cena-chave de seu filme Contrastes Humanos (Sullivan's Travels, 1941) 

O diretor de comédias Sullivan queria gravar filmes dramáticos que refletissem sobre a realidade, mas após uma série de infortúnios vai parar numa prisão injustamente. Ele volta a rir numa sequência com os outros presos assistindo ao curta de Pluto. Ele então percebe o poder sem fronteiras do riso na vida das pessoas - para muitas, em situações miseráveis, o riso é uma das únicas válvulas de escape


O clássico A Tartaruga e a Lebre (The Tortoise and the Hare, da fábula de Esopo) foi lançado no ano seguinte, 1935


Temos também o famoso Os Três Gatinhos Órfãos (The Three Orphan Kittens, 1935), que certamente inspirou os desenhos de Tom & Jerry


Ferdinando, O Touro (1938), sobre um touro sensível que preferia cheirar flores ao invés de fazer tourada (história original de Munro Leaf)


A história do Patinho Feio (The Ugly Duckling, de Hans Christian Andersen) inspirou dois curtas: um em 1931 e um em 1939 (do pôster), este último sendo a última Silly Symphony do estúdio. A Disney continuou fazendo curtas com a turma do Mickey, mas com o sucesso de Branca de Neve, o estúdio apostou mais em longas


O Pato Donald surgiu como um antagonista para o personagem Mickey, que já estava ficando desgastado sem outros amigos nas histórias. A primeira aparição de Donald foi em 1934 no curta A Galinha Espertalhona (The Wise Little Hen). Com o tempo o personagem ganhou mais destaque e roubou a cena de Mickey.



Clarence Nash, o dublador original do Donald

O Pateta também veio como um amigo atrapalhado de Mickey para apelos cômicos, passando de mero coadjuvante para estrela solo de filmes a partir de 1939 com Goofy and Wilbur. Pateta fez muito sucesso com o tempo, a ponto de ter uma série de TV (A Turma do Pateta, original Goof Troop) e ser o primeiro personagem Disney a ganhar um filme só seu em 1995 com Pateta: O Filme (A Goofy Movie). 

Os curtas de Pateta no estilo "como (não) fazer algo" fizeram muito sucesso

Pinto Colvig, o dublador do Pateta, do cachorro Pluto e também de outros personagens fora da Disney como o Palhaço Bozo


Walt era extremamente exigente com seus funcionários. Nos anos 1930 o estúdio ainda era menor e tinha uma atmosfera amigável e familiar. Nesse período que Walt contratou alguns dos animadores históricos que viriam a ser os "Nine Old Men" (os animadores mais leais a Walt). Disney fazia questão de ser chamado de "Walt" por todos, nada de "Mr. Disney". Mas raramente elogiava o trabalho dos artistas, no máximo dizendo coisas como "isso vai funcionar". Se falava bem de alguém, era indiretamente para outras pessoas, e só pelo boca a boca que um artista descobria que Walt o havia elogiado. 


Os nove animadores recorrentes de Disney no período clássico: Frank Thomas, Ollie Johnston, John Lounsbery, Marc Davis, Ward Kimball, Woolie Reitherman, Les Clark, Eric Larson, Milt Kahl


Ainda assim, as reuniões podiam ser bastante difíceis e tensas. Walt fumava como uma chaminé, o que o fazia ter uma tosse tão característica que podia ser ouvida logo nos corredores quando estava se aproximando. Um defeito em particular no ambiente de trabalho era o fato de Walt quase nunca elogiar o trabalho dos funcionários diretamente, mas sempre apontar os defeitos ou falhas na produção dos desenhos. Outro problema era Disney ter boas ideias mas sempre esperar que os outros alcançassem seus ideais de perfeição ou que o entendessem total e imediatamente, mesmo sem dizer uma palavra ou explicar propriamente. Ele podia não se expressar com palavras, mas sua arcada de sobrancelha e dedos batucando nas mesas e cadeiras quando descontente tornaram-se históricos. Ele também não permitia palavrões dentro do estúdio, e a partir de 1957 proibiu que os funcionários tivessem bigode (regra que só caiu nos anos 2000). 


À parte da imagem de homem feliz e motivacional, Walt era extremamente impaciente, temperamental, perfeccionista, fumante inveterado, dono de um humor excêntrico e até (auto)depreciativo

Talvez fosse uma tática de chefe ser assim, afinal Disney era bem perspicaz e um excelente observador e entendedor das pessoas. Por meios nada ortodoxos, Walt criou uma aura onipotente ao redor de si. E também estimulava nos seus trabalhadores a vontade de surpreendê-lo sempre com as melhores ideias, os melhores desenhos. Alguns dos animadores o lembram como um ditador, outros como um chefe estimulante, enfim. Bem ou mal, os resultados desse ambiente criativo se mostraram excelentes.



Um dia normal de trabalho com Walt Disney (por Floyd Norman)


"A comédia adequada para a tela é visual. Os filmes tentam arrancar muitas risadas dos diálogos. Usamos pantomima, não piadinhas. A representação das sensações humanas por objetos inanimados, como pás a vapor e cadeiras de balanço, nunca deixam de provocar risos. A angústia humana exemplificada por animais é infalível. Um pássaro que pula após engolir um gafanhoto é natural. A surpresa é sempre provocativa."


Assinatura de Walt Disney dos anos 1930. Sua caligrafia tinha muitas variações, mas era sempre única, marcante e cheia de loops 

Em 1931, Walt Disney sofreu um breakdown e tirou férias curtas do trabalho com sua esposa Lillian. Ele foi a vida inteira um workaholic, tão entusiasmado que era com os seus projetos, ele poderia passar noites em claro trabalhando ou pensando em suas criações, às vezes nem voltando para casa. E em casa, o casal Disney passava por problemas para ter filhos: Lillian sofreu dois abortos. Mas além do trabalho em excesso e dos problemas de Lillian para engravidar, Walt sofreu mais revezes com parcerias infelizes nos negócios. 


O sucesso da febre do Mickey e sua turma trouxe alegrias mas também dissabores profissionais e pessoais

Em certo momento Pat Powers, o distribuidor dos primeiros curtas sonoros do estúdio, se recusou a liberar mais dinheiro para Disney e resolveu tomar Ub Iwerks para si, acreditando que o talento do estúdio estava em Iwerks e não em Disney. Carl Stalling, um compositor renomado de desenhos animados como Looney Tunes e Merrie Melodies na Warner, trabalhou na Disney nessa época e também aproveitou a crise para sair do estúdio, achando que sem Iwerks, um dos animadores principais, o negócio não iria adiante. 


Ub Iwerks deixou o estúdio e criou o seu próprio, o The Iwerks Studio. Lá o animador criou tipos como Flip O Sapo, Willie Whooper e as séries animadas ComiColor Cartoons e Merry Mannequins. Mas apesar de seu talento, Iwerks não bateu o sucesso de Disney e o estúdio acabou encerrando suas atividades- muitos diziam que ele era um excelente desenhista, mas não tinha senso de humor. 

Iwerks voltaria anos depois, já 1940,  para trabalhar para Disney de novo, mas os anos de amizade em Kansas City ficaram para trás de vez e a relação dos dois se resumiu a partir de então ao profissional. Iwerks também desenvolveu diversos projetos para a Disneyland nos anos 50. Sua mente criativa era tão à frente do tempo quanto a de Walt, o que ajudou no desenvolvimento de muitas tecnologias de animação e entretenimento, como por exemplo uma engenhosa câmera de 360 graus. Iwerks também contribuiu no aprimoramento das cenas de live-action com desenhos animados nos anos 40, e nos anos 60 trouxe a ideia da animação estilo xerox usada em 101 Dálmatas


Ub Iwerks (1901-1971)


Walt e Ub já nos anos 60


Devido aos rompimentos profissionais amargos com pessoas nas quais confiava, Walt foi com o tempo se tornando desconfiado, mais fechado, ríspido e às vezes tirânico nos negócios. Não era só questão de dinheiro, status ou poder, mas sim uma questão pessoal. Se Walt se sentisse traído ou passado para trás, a mágoa poderia ser mortal. O humor dele também era flutuante, desde a euforia infantil até acessos repentinos de raiva. Ele tinha uma natureza apaixonada e intensa, por vezes infantil. Não necessariamente um otimista, mas Disney tinha uma incansável disposição nos seus projetos, digna de um garoto que se recusava a crescer. 


O staff do estúdio reunido, anos 1930


Depois do fim da relação com a Powers Cinephone, o estúdio Disney fechou contrato com a Columbia Pictures por um breve período. Mesmo com o sucesso do Mickey, Walt e sua trupe ainda eram vistos com olhares tortos, pois desenhos animados eram considerados bobagens sem futuro ou entretenimento barato. Louis B. Mayer da MGM rejeitou assinar com Disney pois achava aquilo tudo uma porcaria. Até Harry Cohn, da Columbia, não tratou os desenhos de Disney com o devido valor durante o contrato. 

O diretor de cinema Frank Capra relembrou em sua autobiografia O Nome Acima do Título o momento em que conheceu Walt Disney:  


(...) "Frank, apresento-lhe Walt...". Não consegui entender o último nome do jovem esquelético, com ar de esfomeado e barba de dois dias, que me apresentaram. Lembro-me que trazia na cabeça um boné e o levantou dizendo: "Saudações!". 


Sketch do curta The Karnival Kid (1929), quando Mickey disse a sua primeira palavra: "hot dogs"

(...) Quando as primeiras imagens do filme [um curta de Mickey] apareceram na tela, bem depressa despertei, com os olhos arregalados de espanto. Aquilo era uma coisa completamente nova - um desenho animado! Um rato impertinente e vivaz, de voz estridente, parodiava um recital de piano, martelando as teclas com as mãos, com os pés, com o nariz, até com a cauda. A imagem e o som estavam perfeitamente sincronizados. Os técnicos da minha equipe, exaustos depois de um dia de trabalho, agora morriam de rir.  Assistíamos sem dúvida a um divertimento fabuloso e completamente inovador. Se bem me lembro, o desenho animado durava apenas quatro ou cinco minutos. Mas quando acabou, esquecera-me completamente do meu cansaço e, dirigindo-me ao homem com ar de mendigo que me fora apresentado, disparei, uma após a outra, um sem número de perguntas entusiastas. Respondeu-me de uma forma bastante modesta: 


"Sim, trabalhei em animação em Chicago... Não, esta personagem do camundongo é uma criação nova... Chamo-lhe Mickey Mouse. Não, o rato fala com a minha voz... Não, gravamos o som primeiro e só depois metemos a animação, de forma a desenho e som ficarem perfeitamente sincronizados... Sim, gostaria muito que o mostrasse a Harry Cohn..."



Dito e feito. Cohn de início achou uma perda de tempo, mas assinou com Disney. Capra comenta que Cohn não soube lidar com Walt e perdeu "a maior mina de ouro de Hollywood". 




Fazendo um paralelo, podemos dizer que Capra e Disney tinham coisas em comum nos seus filmes e ideias. Ambos eram homens patriotas e conservadores pessoalmente; em suas criações tocam os corações de todo o público, enaltecendo os sonhos, a alegria, o riso, a simplicidade, a compaixão e a fraternidade. 


Frank Capra, o diretor dos filmes clássicos inspiradores como A Felicidade Não Se Compra

Insatisfeito com a Columbia, Disney pouco depois arranjou um novo negócio com a United Artists em 1932, fundada por Chaplin e amigos anos antes.

E então 1932 já foi um ano mais feliz para o estúdio e suas animações. Disney recebeu dois Oscars: um por Melhor Curta de Animação por Flores e Árvores, na inauguração da categoria; e mais um prêmio especial pela criação do camundongo Mickey, o que de fato foi um marco na história do cinema e dos desenhos animados. Por toda a década, os estúdios venceram prêmios pelos seus curta metragens. Walt se tornou o produtor cinematográfico com mais estatuetas (26 no total, e 59 indicações), recorde até hoje mantido. 

Mas por incrível que pareça, a categoria de Melhor Filme de Animação só foi criada mesmo em 2001, sendo Shrek da DreamWorks o primeiro desenho animado a vencer na categoria. Walt Disney venceu mais por Melhor Curta, Melhor Documentário, Melhor Canção e alguns Honorários especiais. 


Os prêmios de Disney no museu Walt Disney Family Museum, em San Francisco, California, EUA

A primeira filha do casal Disney, Diane, nasceu em 18 de dezembro de 1933. Walt ficou encantado em ser pai e quis ter ainda mais filhos, mas Lillian foi desaconselhada a passar por mais uma gravidez. Então o casal optou por adotar uma menina chamada Sharon em 1936. Disney sempre fez questão de manter as filhas longe das câmeras e da imprensa, com o fim de preservar a sua família.


O casal Disney com a primeira filha Diane, 1933 (cortesia D23.com)

Com Diane e Sharon, suas duas filhas

Para relaxar, Walt e seus funcionários eventualmente praticavam esportes ou atividades recreativas do tipo para desestressar. Disney começou a praticar esportes, em especial o polo, porque todos os outros como boxe e golfe não deram muito certo. Longe de ser um atleta e bem desajeitado, Walt sofreu um acidente de polo que deixou uma lesão de vida inteira em suas vértebras. 


Jogando softball com seu staff, já nos anos 40

O ator Spencer Tracy foi um dos poucos amigos que Walt fez no círculo de estrelas de Hollywood. Dizem até que Tracy e Disney eram mais do que só amigos, mas nada comprovado... rs


Walt, quando não carrasco no estúdio, era em geral amigável com todo mundo, mas tinha poucos amigos na vida pessoal, e quando os tinha não conseguia manter muito contato ou socializar, pois estava sempre ocupado trabalhando ou pensando em projetos futuros. Apesar de manter uma aparência de homem feliz e de família, Walt era em geral solitário e passava boa parte do tempo sozinho no seu escritório ou andando sem rumo, fumando, imerso em seus pensamentos e fantasias. Preferia a companhia de homens e supostamente disse que não queria que a Disney fosse chefiada um dia por uma mulher. Para sua tristeza no além, no final de 2021 a primeira mulher presidente da Disney (Susan Arnold) foi eleita, em 98 anos de companhia!  

Mas sexismos à parte, Disney deu espaço para mulheres artistas dentro de sua empresa, e em 1959 Walt disse: 


“As mulheres são as melhores juízas de qualquer coisa que produzimos. O gosto delas é muito importante. Elas são as frequentadoras do teatro, são elas que arrastam os homens. Se as mulheres gostam, que se danem os homens."



Nessa época, até meados dos anos 40, mesmo não mais desenhando, Disney tomava conta e supervisionava cada detalhe dos filmes produzidos no estúdio e todos os outros produtos relacionados com os personagens, como brinquedos, quadrinhos, livros, etc.




BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES: o início da era dourada da Disney clássica



A partir de 1934, já deveras cansado de fazer apenas curtas, Walt começou a pensar em um novo e ambicioso projeto: um desenho animado em longa-metragem. Disney sempre teve um fraco por contos de fadas, como dos Irmãos Grimm, e aos 15 anos ele ficou fascinado com uma versão de 1916 de Branca de Neve, estrelada pela hoje esquecida Marguerite Clark. Ele nunca esqueceu a experiência fílmica e o impacto que deixou nele, e assim ele bateu o martelo: Branca de Neve e Os Sete Anões seria o primeiro filme longo do estúdio. Seria também a primeira animação de longa-metragem dos Estados Unidos, totalmente colorido em Technicolor. 



A primeira animação longa conhecida é o alemão As Aventuras do Príncipe Achmed, feito por Lotte Reiniger, de 1926. Dois filmes argentinos do artista Quirino Cristiani são considerados os primeiros de todos, mas hoje estão perdidos


Lotte Reiniger foi uma pioneira na animação, especialista em arte com silhuetas e recortes. A artista passou por dificuldades durante a carreira, tendo que fazer propaganda para Hitler para se sustentar, mesmo sendo opositora ao regime. Hoje ela enfim tem mais reconhecimento pela sua trajetória


Quirino Cristiani, o pioneiro argentino da animação, hoje é esquecido pelo fato de quase todos os seus filmes animados terem se perdido em incêndios


A versão de Snow White que marcou o adolescente Disney em 1916


No decorrer daquele ano de 1934, começaram os primeiros esboços do projeto. Walt tinha uma fama mítica de ótimo ator e excelente contador de histórias - e numa noite ele chamou seu staff para uma apresentação das suas ideias para Branca de Neve. Walt encenou por horas todas as cenas que ele tinha em mente para o filme, contando detalhe por detalhe, representando todos os papéis da história ele mesmo na frente de um grupo emocionado e completamente envolvido. 


Mesmo não profissional, Walt era conhecido por seu talento dramático e também por saber contar histórias como ninguém


Hoje, assistindo ao filme, mesmo mais de 80 anos depois de sua estreia, constatamos que Branca de Neve é uma animação de excelente qualidade, que não envelhece, e para os desavisados nem parece um filme tão antigo. Mas nos anos 30 era um projeto impensável até então, e Disney foi várias vezes dissuadido de continuar com a ideia. Muitos colegas de trabalho diziam que era uma loucura, a maioria das pessoas duvidava que um desenho animado de longa duração atrairia público ou daria dinheiro. Seu irmão Roy tentou convencer Walt a desistir da ideia, e os cochichos no estúdio eram que Disney devia focar apenas em curtas. Até sua mulher Lillian desacreditou o projeto, e nesse tempo o casal Disney viveu uma crise que quase culminou em divórcio. 


O casal Disney durante a tour pela Europa, verão de 1935. Ele e sua comitiva passaram por países como Inglaterra, França, Alemanha, Áustria e Suíça

Para evitar um novo breakdown e também para ir atrás de novas ideias e fontes de inspiração, Walt levou a esposa e alguns colegas para uma turnê pela Europa no verão de 1935. A viagem foi muito frutífera: Disney e sua comitiva trouxeram uma infinidade de livros ilustrados e material possível para adaptação. Essa biblioteca serviu de fonte de inspiração para os animadores. Mais: Disney promoveu a partir de então aulas de arte dentro do seu estúdio para seus funcionários, por não estar satisfeito com cursos fora dali e também porque queria que seus empregados refinassem seus estilos o melhor possível - ideia essa que elevou a qualidade artística das animações a um nível sem precedentes. 


O famoso Picture Book do pintor alemão Hermann Kaulbach foi um entre as centenas de livros que Disney trouxe da Europa, e muito influenciou no desenho estilo clássico de filmes como Branca de Neve e Pinóquio


O filme de Branca de Neve foi resultado de um esforço quase sobre-humano dos animadores, que se estendeu de 1934 até final de 1937, pouco antes da première. Por esse período o projeto ficou conhecido como "Disney's Folly" (a loucura de Disney). Não eram apenas força de vontade e motivação artística que o moviam, mas Walt sabia que o estúdio não teria muito futuro se continuasse apenas com curtas. Aquela era a chance de uma vida, e Disney apostou literalmente todas as suas fichas: o estúdio investiu todo o seu dinheiro, fez uma sucessão de empréstimos, quase tudo de Walt estava pendurado, até sua casa estava na hipoteca, enfim, era tudo ou nada. 


A câmera multiplano foi uma revolução para os desenhos animados: ela filma ao mesmo tempo uma célula em cima da outra, diversificando velocidade e distância entre elas, criando assim um quadro com profundidade e mais realismo 



Mas é importante saber que Disney não foi o primeiro a usar a câmera multiplano, afinal Lotte Reiniger já havia usado em suas animações, por exemplo. Mas Walt aperfeiçoou a sua tecnologia de forma inovadora a partir de Branca de Neve e acabou patenteando a invenção

O filme estreou no dia 21 de dezembro de 1937. Para o alívio e alegria geral, Branca de Neve foi um enorme sucesso - um verdadeiro alento para os americanos recém-saídos da Grande Depressão, de todas as idades. Até hoje a história é cativante, cheia de humor e emoção atemporais. Durante a estreia, Clark Gable e Carole Lombard choraram. John Barrymore estava arrepiado com as sequências soturnas da Rainha Má transformada em Bruxa. E Disney, depois de ataques de ansiedade, dava a última risada: sua dita loucura provou ser uma mina de ouro. 


Walt Disney apresentando os anões durante o trailer de Snow White. No link abaixo vocês podem assistir um pouco dele falando no trailer original da época (em inglês): 




O realismo da animação conquistou o público, somado ao poder da emoção, da fantasia e da imaginação na condução da história e no desenvolvimento dos personagens. O conto dos Irmãos Grimm não foi seguido à risca: por exemplo, as três tentativas de matar Branca de Neve foram encurtadas para apenas a famosa sequência da maçã, cena aliás muito bem executada no estilo de suspense com ação. O fato de cada anão ter a sua personalidade bem definida também enriqueceu o enredo - deixaram de ser apenas coadjuvantes e com seus apelos cômicos trouxeram mais leveza à história (e os animais também!), para contrastar com o romantismo de Branca e a perversidade da Rainha. Cada personagem tem o seu momento de brilhar no filme.


Para criar a ilusão de movimento, eram necessários 24 quadros por segundo. Branca de Neve e a Rainha eram mais difíceis de animar, o que exigiu bastante pesquisa e técnica dos desenhistas


O impacto do filme na indústria se sente em vários filmes feitos depois, por exemplo O Pássaro Azul, até Rebecca de Hitchcock. A MGM resolveu investir em O Mágico de Oz, lançado em 1939, justamente pelo sucesso de uma história de apelo infantil como Branca de Neve com o público.


Adriana Caselotti foi escolhida para dar voz à Branca de Neve, depois de centenas de candidatas serem testadas (Deanna Durbin, estrela da Universal, foi uma das rejeitadas). Ela assinou um contrato de exclusividade com Disney, o que limitou sua carreira. Walt não permitia que ela fizesse muitas coisas, para que a magia por trás da Branca de Neve não se perdesse para o público. Já envelhecida para fazer performances da princesa, Adriana investiu em outras coisas, como imóveis e mercado de ações, além de cantar ópera esporadicamente. 

No Brasil, Branca de Neve foi dublada originalmente pela rainha do rádio Dalva de Oliveira nas falas e Maria Clara Tati Jacome nas músicas (curiosamente). Essa versão original foi se perdendo com o tempo, e nos anos 60 foi feita uma nova dublagem com Maria Alice Barreto nas falas e Cybele Freire (do Quarteto em Cy) nas canções - essa é a dublagem que permanece nas edições mais recentes do filme


A atriz e dançarina Marge Champion, na época Marjorie Belcher, serviu de modelo para os desenhistas, para dar mais veracidade aos movimentos e expressões da personagem


Marge também serviu de modelo para a Fada Azul de Pinóquio. Depois seguiu uma carreira de sucesso como dançarina com seu segundo marido Gower Champion

A animação é permeada de referências de cinema. Walt mandava os desenhistas assistirem a clássicos do cinema mudo, ou também qualquer filme no cinema que lhes desse ideias eles estariam vendo e prestando atenção nos detalhes, nos enredos e na condução dos mesmos. 


Alguns cenários macabros como a floresta para onde Branca de Neve foge assustada foram claramente inspirados pelo expressionismo alemão de filmes como Nosferatu e O Gabinete do Doutor Caligari  


A transformação da bela Rainha em velha mendiga bebeu da fonte de O Médico e O Monstro 


Para a Rainha, Joan Crawford é apontada como a maior inspiração - arte principal da personagem por Art Babbitt

Helen Ganahan no filme She, de 1935. O look da rainha feiticeira lembra muito o visual da Rainha do desenho



Não surpreenderia se Greta Garbo (acima) e Marlene Dietrich (abaixo) também tivessem inspirado os looks da vilã


No caso da Branca de Neve, as inspirações foram muitas. Além de Marge Champion, que serviu de modelo oficial, os animadores também buscaram inspiração em artistas da época. 

Hedy Lamarr (a deusa que inventou o Wi-fi) costuma ser apontada como a inspiração de Snow White. Aqui na época de seu filme polêmico Ecstasy (1933), que mostrou o primeiro orgasmo feminino e talvez um dos primeiros nus femininos (sem ser pornográfico)


Nos registros da época da produção, Walt dizia querer um tipo parecido com Mary Pickford (acima) e Janet Gaynor (abaixo), duas sweethearts da América nos anos 20 e 30




Pela importância do filme para a indústria, Disney recebeu um Oscar especial e sete pequenos prêmios para representar os anões do filme. Os prêmios foram entregues pela atriz Shirley Temple na cerimônia de 1939


De 1937 até 1956, as produções Disney foram distribuídas pela RKO Radio Pictures


O sucesso de Snow White levou o estúdio aos céus como um foguete. Choveram elogios, prêmios e muito dinheiro. Em pouco tempo a empresa conseguiu liquidar as dívidas e voltar aos trilhos. Mas Walt, como de costume,  queria mais: seus filmes seguintes seriam tão ambiciosos ou mais ainda do que Branca de Neve. E mais: ele queria construir um novo estúdio Disney. 


A alegria dessa fase, porém, foi interrompida.  Sua mãe Flora faleceu em 1938. Ela morreu intoxicada com um vazamento fatal do sistema de aquecimento na casa que Walt e Roy haviam comprado para seus pais. O pai Elias ainda conseguiu se recuperar da intoxicação, mas Flora não resistiu. 


Os pais Disney com os filhos em Hollywood. Herbert era carteiro e Raymond vendedor de seguros. Walt e Roy quiseram trazer os pais para Hollywood numa casa nova comprada por eles (que infelizmente tinha problemas na calefação, que nem os técnicos conseguiram resolver). O golpe da perda da mãe foi duro para os irmãos

Acredita-se que Walt viveu atormentado pela ideia de ter sido indiretamente responsável pela morte da mãe. Isso também promoveu a ideia de que os filmes Disney quase nunca mostram mães nos contextos familiares justamente por Walt ter perdido a sua mãe de uma forma traumática. É curioso notar, mas não prova de fato ser a razão da ausência das mães nas histórias. Os filmes Disney no fim das contas sempre lidam com histórias de amadurecimento: superar as dificuldades e perdas no meio do caminho, seguir os seus sonhos e manter se fiel a si mesmo, ainda que confronte o status quo. Para no fim crescer sem deixar morrer a criança interior - algo simbolizado pelo próprio Walt Disney na sua trajetória.  


OS ANOS IMPACIENTES: FLOPS, GREVE, GUERRA, AMÉRICA DO SUL


1938 - Após um grande sucesso (ou mesmo um fracasso), Disney já mirava logo em uma nova missão, igual a uma criança que está sempre atrás de um novo brinquedo

Era um novo momento na Disney. Os curtas deixavam de ser a atração principal, e assim a série Silly Symphonies chegou ao fim em 1939. Depois de Branca de Neve, Disney queria lançar Bambi como o seu segundo longa-metragem. No entanto, pelas dificuldades em desenhar animais de forma realista, o estúdio optou por adiar Bambi (que continuou sua pré-produção em off) e no lugar avançaram os trabalhos de Pinocchio.




PINÓQUIO (1940)




Os esforços artísticos em Pinóquio foram ainda mais intensos e rebuscados do que em Branca de Neve. Porém o romance italiano de Carlo Collodi se mostrou bem mais desafiador de adaptar do que a simples história de Branca de Neve. A história do boneco de madeira é quase uma odisseia surreal de acontecimentos e aventuras insanas: fugir de um ventríloquo perverso, escapar de uma ilha onde garotos maus viram burros, e resgatar Gepeto e amigos de dentro de uma baleia. 


Diferente do garoto levado e ingênuo do filme, Pinóquio no livro é rude, frio e cruel. Umberto Eco disse uma vez que esse livro de infantil não tinha nada 


O personagem do Grilo Falante (Jiminy Cricket) foi criado por Disney para guiar Pinóquio e conduzir o enredo. Ele foi tão redesenhado para ser bonitinho que nem parece um grilo de verdade. A música When You Wish Upon a Star virou hino da Disney desde então



O filme foi uma conquista inovadora para a animação, para alguns historiadores de cinema o que mais se aproxima da perfeição técnica de animação da Disney. Além dos personagens cativantes, lindamente animados, os animadores conseguiram criar efeitos realistas impressionantes: nas sombras e na fumaça; nos veículos e máquinas; nos elementos da natureza como a água, a neve, o mar e  a chuva; nos efeitos mágicos e especiais como na magia da Fada Azul.  



O animador Frank Thomas disse: "A água parece tão real que uma pessoa pode se afogar nela". Thomas e Ollie Johnston foram os animadores principais do desenho


A crítica em geral foi favorável a Pinóquio, alguns o acharam até superior artisticamente a Snow White. Mas por conta da Segunda Guerra Mundial, o filme flopou durante suas primeiras exibições nos cinemas. Em retrospecto, além do desempenho fraco na bilheteria, Walt ficou insatisfeito com o resultado de Pinóquio. "Faltou algo inalcançável no filme", refletiu mais tarde. Felizmente, com os relançamentos do filme ao longo das décadas, o desenho conseguiu retornar com muito lucro e hoje é considerado um clássico incontestável da Disney.


Bom observar também que o filme, bastante moralista, tem passagens sombrias e até "pesadas". Hoje em dia as sequências das crianças bebendo, jogando e fumando na Ilha dos Prazeres seriam impensáveis, por exemplo. 


Walt contando a história de Pinóquio para as filhas

  

FANTASIA (1940)


O desenho do personagem Mickey foi refeito especialmente para o filme, e é a visão mais comum que temos dele hoje


A ideia inicial era só fazer um curta de Mickey como "o aprendiz de feiticeiro", baseado na composição musical de Paul Dukas (The Sorcerer's Apprentice). O famoso maestro Leopold Stokowski ficou fascinado com a ideia quando Disney contou a ele durante um jantar. Stokowski se propôs a conduzir a música do filme, e dessa conversa foi nascendo a ideia de Fantasia

Walt apresentando ideias do filme para Deems Taylor, o apresentador do filme, e o maestro Stokowski

O investimento em "O Aprendiz de Feiticeiro" foi ficando tão dispendioso que o estúdio achou melhor produzir logo de uma vez um longa metragem de vários segmentos independentes, cada um com uma música clássica diferente. Antes do nome Fantasia surgir ao longo da produção, o filme era referido como "the concert feature" (o longa do concerto). 


Dentre as inúmeras inovações da obra, uma das mais experimentais e criativas foi investir na abstração. Aqui são os efeitos especiais que acompanham a peça Tocata e Fuga em Ré Menor BWV 565, de Bach


O projeto de reunir desenho animado com música clássica foi certamente a ideia mais inovadora e ambiciosa da história da Disney, consequentemente a mais arriscada de todas. Mais do que isso: Walt queria transformar o ato de ir ao cinema numa experiência única. O estúdio idealizou um sistema pioneiro de som chamado Fantasound, que funcionaria como o atual sistema Surround (estéreo), com o propósito de dar ao público a ideia de estar mesmo em um concerto de música. Esse sistema de som faria os espectadores ouvirem os instrumentos da orquestra de diferentes distâncias e em diferentes intensidades, assim como a acústica de um concerto musical de verdade. A plateia também iria receber um programa com uma descrição das músicas e sequências do filme musical. Walt estava tão empolgado que queria tornar Fantasia uma atração contínua nos cinemas, todo ano acrescentando novas passagens e peças musicais, para tornar a experiência fílmica ao público única e inesquecível.

Stokowski e Mickey apertam as mãos durante interlúdio do filme. Fantasia ganhou dois Oscars honorários pelo seu trabalho inovador  e um prêmio especial do New York Critics Circle Awards


Mas apesar das ótimas ideias, a recepção não foi das melhores. O conceito de Fantasia foi melhor recebido nas salas de cidades grandes como Los Angeles e Nova York, enquanto que flopou nas cidades menores. Sobre o sistema de som, a RKO não quis investir no Fantasound, o que fez Disney usar a tecnologia por conta própria apenas em 12 salas de cinema. 

Além de Bach e Dukas, os segmentos do filme tiveram música de Tchaikovsky (Quebra-Nozes), Stravinsky (Sagração da Primavera), Ponchielli (Dança das Horas), Mussorgsky (Uma Noite no Monte Calvo) e Schubert (Ave Maria)

As críticas foram em maior parte positivas e entusiastas. A recepção negativa veio mais da classe musical conservadora que não gostou da forma com que Disney conduziu as músicas. O fracasso comercial de Fantasia foi uma das maiores frustrações da carreira de Walt. Com os relançamentos do filme ao longo dos anos, a obra conquistou novas gerações, arrecadou bastante lucro e enfim ganhou o reconhecimento que merece. 


Igor Stravisnky em visita aos estúdios para discutir ideias para o filme. Ele depois fez duras críticas ao segmento com sua composição Sagração da Primavera

Aproveitando o gancho: Walt não era propriamente um erudito, aliás por muitos era considerado um filisteu simplório, sem bom gosto. Ainda que tivesse ficado rico e poderoso, Disney sempre manteve suas raízes simples do interior. Em suas viagens pelo mundo, ele levaria na bagagem latas de chilli ou feijão  (suas comidas favoritas). Suas residências, sendo consideradas cafonas ou não, eram confortáveis e espaçosas mas nunca ostensivas. Até os anos 50 ele se vestia de forma bastante casual para um magnata de Hollywood, e mesmo depois nada muito extravagante, com roupas que ele mandava fazer, nunca de grifes. 

De qualquer forma, Walt Disney acreditava no poder das artes visuais assim como na arte da Música. Ele sempre fez doações generosas para instituições de Artes durante a sua vida, além de outras causas em geral.

Em 1999 foi lançada uma continuação do clássico: Fantasia 2000


A GREVE DO ESTÚDIO (1941) 


A ideia do novo estúdio em Burbank, na South Buena Vista Street, se tornou uma faca de dois gumes. Foi um projeto novamente caro a ponto de colocar o estúdio mais uma vez em situação de risco com os bancos e cia. A guerra estava cada vez mais crítica e seus efeitos no mundo impossíveis de ser ignorados. Para piorar, nem Pinóquio nem Fantasia conseguiram gerar retorno suficiente para Disney, que se viu obrigado a cortar despesas e salários. Nessa época o estúdio também passou pela primeira vez a oferecer ações dentro do mercado da bolsa de valores. 


No auge de sua falta de noção da realidade, Walt ameaçou os grevistas de barrá-los para sempre de sua piscina particular. Seu discurso elitista só aumentou a ira dos grevistas em 1941


Walt idealizou o estúdio novo não apenas pensando no próprio ego, mas também no bem-estar de seus trabalhadores ao criar um ambiente estimulante de trabalho, nos mínimos detalhes. Como um pai, ele pensava que estava fazendo o melhor para seus filhos, sem se dar conta do que esses "filhos" realmente queriam ou precisavam. O estúdio de Burbank parecia um campus universitário: descolado, aberto, imenso e aparentemente amigável. Entretanto, justamente por ser enorme e um tanto impessoal, tirou muito da proximidade informal entre as pessoas e quebrou a atmosfera casual que havia no antigo estúdio da Hyperion. Pior: aumentou a desigualdade entre os trabalhadores. Enquanto poucos tinham muitas regalias, a maioria ganhava salários baixos por muitas horas de trabalho e nenhum acesso às áreas VIPs da empresa. 


O estúdio de Burbank, em Los Angeles, foi inaugurado em 23 de fevereiro de 1940 e funciona até os dias de hoje


Disney não era bem um Tio Patinhas, aliás o pessoal do estúdio era um dos mais bem pagos de Hollywood. O problema foi mesmo a desigualdade nos salários e benefícios, e as hierarquias criadas dentro da empresa. Walt tinha a prática de dar bônus aos trabalhadores que tivessem as melhores ideias para os filmes. Com as crises financeiras e flop dos dois últimos filmes, ele cortou bônus e salários. Com os lucros anteriores de Branca de Neve, ao invés de aumentar os salários igualmente ele investiu em um novo estúdio e só deu benefícios a uma parcela minúscula - aqueles que ele pensava terem se destacado mais. Aos outros, através de uma abordagem meritocrática e psicológica, ele disse que se melhorassem no trabalho, seriam igualmente promovidos.  Ele achava que dando muita colher de chá, a qualidade do trabalho do seu staff diminuiria. Dessa forma ele foi se tornando uma espécie de déspota. 

Walt caiu do cavalo, pois sua condução equivocada dos negócios gerou revolta quase geral entre os trabalhadores. Em 28 de maio de 1941, a greve foi declarada. 


A greve no seu fim reduziu o número de empregados quase que pela metade, mas os trabalhadores conseguiram seus direitos através de acordos entre Disney e o sindicato de cartunistas 


Walt isolado durante a greve do estúdio, 1941

Sobre a greve do estúdio em si, houve erros dos dois lados. E foi muito mais do que uma questão de dinheiro e direitos trabalhistas. As questões pessoais entre os envolvidos só deixou a crise ainda mais agridoce para todos. 

Walt errou na sua insensibilidade para com os trabalhadores. Ao invés de incentivar um trabalho melhor, ele só criou disputas e insatisfação, promovendo competição e um sentimento de hostilidade nos animadores, que começaram a criar rixas entre si. Durante a greve ele se manteve irredutível, especialmente em aceitar que a Disney se submetesse ao Sindicato dos Cartunistas, o Screen Cartoonist's Guild (SCG). Sua teimosia em recusar a sindicalização se deu por ele não querer diálogo com lideranças de esquerda, e obviamente, como um empresário capitalista, para manter o poder total sobre sua empresa. É compreensível que Walt quisesse um ambiente familiar sem influências externas, mas ele não soube gerir esse ambiente de forma igualitária e só teve prejuízos com suas atitudes de déspota.  


Mas o outro lado também teve questões problemáticas. Disney às vezes era intimidado e ofendido na frente das filhas pequenas quando passava pelo estúdio de carro. Piquetes eram formados nos prédios e entradas, e muitos trabalhadores não aderentes à greve eram vítimas de perseguição e boicote. No auge da greve, bonecos de Walt chegaram a ser colocados numa guilhotina. 

Herbert Sorrell, então líder do sindicato dos cartunistas, usou manobras grosseiras de intimidação mais por sede de poder do que progressismo, dizendo que ia reduzir Disney a pó. Isso não aconteceu, mas depois de semanas Walt enfim cedeu ao sindicato no seu estúdio, que permanece até os dias de hoje sindicalizado. 


Na solidão de seu escritório, anos 40

Por mais conservador que fosse politicamente, Disney não misturava sempre as estações durante o trabalho. Se ele acreditava no trabalho de alguém, no seu potencial artístico, não importava a posição política. E havia trabalhadores de esquerda no estúdio, antes e depois da greve. Se ele chegou a denunciar participantes da greve na época do Macarthismo, acredita-se que foi mais ressentimento pessoal do que só intolerância política. No fim ele era um patriota ingênuo que seguia a paranoia da época, achando que estava defendendo seu país e suas ideias. E infelizmente usou sua influência e seu poder para destruir carreiras. Um dos diretores de arte de Fantasia, Art Heinemann, participou da greve e teve o seu nome retirado dos créditos do filme. 


Com a profundidade de um pires, para Disney foi mais conveniente considerar a greve como apenas um "movimento comunista". Depois da greve em diante, Walt se tornou cada vez mais conservador politicamente e com um desprezo até patológico por comunistas (ou melhor, o que o remetesse a ideia de "comunismo", isto é, ameaças ao american way of life), participando de grupos reacionários como a Motion Picture Alliance para a Preservação dos Ideais Americanos ao lado de outras figuras históricas do conservadorismo como o astro John Wayne e a escritora Ayn Rand. 

Ele nunca perdoou aqueles trabalhadores grevistas, e de certa forma, teve dificuldades em confiar nas pessoas em geral depois. O estúdio nunca mais teve a atmosfera familiar e amigável de antes.


Durante a greve, foi lançado um pequeno filme, O Dragão Relutante. À parte de seus desenhos foi um meio publicitário de mostrar o novo estúdio Disney nos seus bastidores. O personagem do Dragão é visto hoje como LGBT aceito pelos outros personagens e em nenhum momento depreciado pelo seu jeito delicado de ser


Existe o rumor de que Walt Disney também serviu (alegadamente) para o FBI dos anos 40 até a sua morte em 1966, como uma espécie de agente especial/informante secreto, mas não há provas concretas já que apenas uma ínfima parte dos arquivos confidenciais veio à tona (o resto permanece censurad0). Acredita-se que o FBI também ajudou Disney a obter a licença para construir a Disneyland nos anos 50. 


Micão tour: Disney já em 1947 depondo ao Comitê de Atividades Antimaericanas (HUAC), dando nomes de grevistas e ex-funcionários que ele considerava "comunistas" 


Art Babbitt foi um dos desenhistas mais engajados na greve, aliás sua demissão foi um dos estopins do movimento. Ele e Disney viraram inimigos declarados. Art ainda trabalhou no estúdio depois da greve numa sucessão de idas e vindas até sair de vez em 1947. 


Babbitt, um de seus nêmesis, ainda ajudou a difundir a ideia de que Disney era antissemita, uma falácia que até hoje persiste mas sem provas concretas. Meryl Streep há poucos anos se referiu à Motion Picture Alliance como antissemita, e de fato havia integrantes radicais ali, mas juntou Disney no combo de seu discurso de telão erroneamente.

No máximo, Walt tinha ideias antiquadas e estereotipadas, vide seu retrato depreciativo de judeus nos filmes e em falas suas, mas quem o conheceu nunca o viu sendo intolerante ou preconceituoso com quem quer que fosse. Disney, como muitos de sua época, sofria de certa insensibilidade social, isto é, não era preconceituoso diretamente mas de certa forma reforçava estereótipos e ideias antigas que no fim perpetuavam o status quo e as desigualdades. Paradoxalmente, muitos de seus filmes mostravam a trajetória de heróis excluídos ou marginais em busca de um lugar ao sol.  


O fato de ter recebido a diretora alemã pró-Hitler Leni Riefenstahl (do filme documental Olympia de 1938) no estúdio para uma tour só reforçou a ideia de Walt ser simpatizante do Nazismo. Novamente, um equívoco. Muitos acreditam que Disney manteve contato com alemães (até simpatizantes do Nazismo) apenas para que conseguisse manter seus filmes em circulação na Europa. À parte disso, Disney estava interessado em Leni como artista, e nesse aspecto ele ignorava o espectro político da pessoa. Com a exceção de suas paranoias anticomunistas movidas por ressentimento e ufanismo, Walt sabia separar as coisas na hora do seu processo criativo. 


O que eu gostaria de deixar claro é que, apesar de suas relações casuais com pessoas antissemitas, não há nada que comprove que Walt Disney era de fato antissemita. Isso já foi negado por amigos, familiares e conhecidos de Walt diversas vezes, e particularmente acho muito raso reduzir todo o legado do homem em uma suposição depreciativa que no fim em nada acrescenta. 


1941 ainda reservou um outro baque para Walt Disney: seu pai Elias faleceu em setembro, enquanto Disney e seus colegas estavam de viagem pela América do Sul. 


VOANDO PARA O RIO: Saludos Amigos e Você Já Foi À Bahia?


Walt ficou fascinado com a beleza natural do Rio de Janeiro, aqui filmando na Praia de Copacabana. Ele era todo sorrisos no Rio (o que não era tão comum dele)

Enfim, depois de tanta treta, perdas e controvérsia, vamos falar agora de um período feliz e colorido dessa época: a viagem de Disney para a América do Sul no segundo semestre de 1941. 




Walt aceitou o pedido de Nelson Rockfeller naquele ano de 1941 para fazer uma turnê pelos países latino-americanos. A viagem foi idealizada pelos EUA com o fim de promover a política da boa vizinhança na América, ainda mais naqueles idos de Segunda Guerra Mundial. Com o Brasil, por exemplo, era interessante manter boas relações não só por fins econômicos e comerciais, mas porque Getúlio Vargas mantinha uma relação cordial até demais com o nazismo de Hitler, além do fato de promover um regime ditatorial ele mesmo no país, o Estado Novo. 

A viagem também serviu para Walt tomar um chá de sumiço do estúdio, ainda marcado pelo fantasma da greve.


Walt com Vargas no Palácio do Catete, Rio de Janeiro (1941)


Com Ary Barroso (acompanhado da esposa e amigas).  Composições de Ary foram usadas para a trilha sonora de Alô Amigos e Você Já Foi à Bahia, como Aquarela do Brasil, Na Baixa do Sapateiro e Os Quindins de Iaiá



Com o escritor também sagitariano Érico Veríssimo (não sabemos se em Los Angeles ou no Brasil, pois eles se encontraram mais de uma vez). Disney ainda fez uma rápida passagem por Porto Alegre antes de embarcar para a Argentina


Enfim, Disney não aceitou por mera politicagem. Ele e seus trabalhadores iriam buscar inspiração e material para fazer filmes animados que promovessem a amizade entre os países americanos. Dessa ideia, nasceram dois longas: Alô Amigos (1942) e Você Já Foi À Bahia? (1944). Em 1946 o estúdio pensava em lançar um terceiro filme com temática latina, dessa vez sobre Cuba, com o nome provisório de Cuban Carnival, mas com o fim da Guerra e restrições do estúdio, o projeto foi arquivado. 


Zé Carioca apresenta a cachaça para o Pato Donald. Apesar do papagaio brasileiro ser um pouco estereotipado, não deixa de ser carismático e vibrante à sua maneira

Disney e Carmen Miranda brincando com os bonecos de Zé Carioca e Pato Donald, meados de 1942


O personagem brasileiro Zé Carioca (ou Joe Carioca em inglês) foi inspirado no músico José do Patrocínio Oliveira, o Zezinho, que fez parte da Banda da Lua, acompanhamento frequente de Carmen Miranda nos palcos. Ironicamente, ele não era carioca, e sim paulista!


A artista Mary Blair e colegas na praia carioca em busca de inspirações. As ilustrações de Blair (favorita de Walt) fariam história nos desenhos da Disney e depois nos parques temáticos 


Desenho de Mary Blair para Los Tres Caballeros 



O squad americano: Pato Donald (EUA), o papagaio José Carioca (Brasil) e o galo Panchito (México). Os dois filmes eram uma reunião de curtas animados sem uma relação direta entre si


A cantora e dançarina Aurora Miranda (irmã da Carmen) e amigos em sequência que mistura live action com animação em The Three Caballeros, bem moderna pra época. A parte musical brasileira dos filmes contou com composições de Ary Barroso, Zequinha de Abreu, João de Barro e Dorival Caymmi

Esboços animados do filme de Cuba, que acabou engavetado. A Colômbia, que não foi retratada nessa época nos filmes, agora está retratada no recente longa Encanto, de 2021



A passagem de Disney pela América do Sul rende por si só um post à parte, então eu não vou me prolongar mais sobre. Fica para uma próxima! (talvez num podcast futuro eu traga mais material, então fiquem ligados)

Um autógrafo raro assinado durante sua estada no Rio, em agosto de 41. Sua letra de forma foi usada para a criação do logotipo do estúdio (numa aparência mais legível e estilizada)


Num momento "gaúcho" pela sua estada na Argentina. Ele adorava a vida no campo e de certa forma sempre manteve os valores de um garoto do campo. A Argentina, a Bolívia e o Chile também tiveram seus segmentos próprios em Alô Amigos


DUMBO (1941)


A produção de Dumbo foi atrasada por conta da greve dos animadores. Depois dos flops comerciais caríssimos Pinóquio e Fantasia e todo o auê interno na empresa, a Disney apostou em um filme curto, desenho mais simples e de orçamento reduzido. E deu certo! Dumbo foi um sucesso ao estrear em 23 de outubro de 1941, e permanece como um dos inesquecíveis clássicos do estúdio. Com apenas 64 minutos de duração e animação mais singela, é a perfeita representação animada de que "menos é mais"! Disney pôde enfim respirar aliviado com um retorno financeiro... Saludos Amigos e The Three Caballeros também fizeram sucesso comercial e de crítica. 

Foi tanto sucesso que o elefantinho Dumbo ia estampar a capa da revista Time em dezembro de 1941, mas por conta do ataque de Pearl Harbor naquele mesmo período, a capa nunca chegou a acontecer. 


Hoje os corvos do filme são problematizados como racistas, mas eles eram figuras marginalizadas e de espírito livre que fizeram Dumbo se dar conta de que era capaz de alçar voo (literalmente) com as suas orelhas grandes 

Em conclusão, Dumbo é um filme redondinho no qual tudo funciona como um reloginho, assim como em Branca de Neve a soma dos ingredientes resultava em perfeição. Sim, há partes problemáticas mas não acho que afetam o resultado final. O filme continua cativante e passível de identificação na questão do bullying e da exclusão social de Dumbo e sua mãe, dos corvos e do ratinho - cada um deles marginalizado dentro de um contexto social. E uma questão importante que é denunciada: a exploração animal nos circos, que até outro dia era muito frequente e vista como entretenimento. 


O argumento do filme foi baseado no livro infantil de Helen Aberson e Harold Pearl, com ilustrações originais de Helen Durney. Essa é uma edição já lançada pela Disney em 1941


Walt anos depois diria que Dumbo, junto com Branca de Neve, era seu filme favorito dentro da sua obra. Talvez por ter conseguido passar a sua mensagem de forma singela, simples e bem-sucedida altogether.


E a sequência wtf dos elefantes cor-de-rosa até hoje gera um misto de emoções no público 


BAMBI (1942)


"O que aprendi com o mundo animal, e o que todo mundo que o estudar aprenderá, é um senso renovado de parentesco com a terra e todos os seus habitantes."



Aqui, mais ainda que em Dumbo, Disney prega o amor aos animais e à natureza, através de uma história emocionante de amadurecimento sob a perspectiva dos seres da floresta. Walt foi de certa forma pioneiro também nesse quesito, quando a ecologia e a defesa dos animais ainda não eram moda. O grande vilão da história com certeza é o homem caçador, que ainda por cima destrói a natureza com fogo e outras crueldades.


Walt com os cervos de estimação do estúdio. Eles cresceram perto dos artistas e isso ajudou para a composição de Bambi, que começa o filme bebê e termina já adulto


A inspiração veio do livro Bambi: A Life in the Woods do austríaco Felix Salten, publicado pela primeira vez em 1923


O filme levou anos para ser concluído (sua pré-produção começou em 1937!). Foi resultado de muito trabalho e pesquisa para animar a floresta e os animais da forma mais perfeita possível. Um hábito do estúdio que virou rotina para o filme foi trazer animais de verdade para serem estudados e analisados nos mínimos detalhes. Branca de Neve já tinha animais da floresta, mas eram mais coadjuvantes e animados de forma simples. Para Bambi, os artistas aprimoraram muito o estilo de desenho. Tanto que alguns críticos não gostaram do "realismo excessivo" e "falta de fantasia" do desenho. Mesmo com os esforços da empresa, os tempos de guerra foram bem difíceis e Bambi, assim como Fantasia e Pinóquio, não obteve o sucesso esperado na bilheteria. Também como seus antecessores, foi ao longo das décadas recuperando lucros, gerando receitas milionárias e novas críticas positivas enaltecendo-o como um clássico da animação. 


Também foi desafiador adaptar a história original, que era triste e sombria. Ainda com toques Disney, o filme é até hoje lembrado como triste pelos espectadores, especialmente pela morte da mãe de Bambi. Pesquisas indicam que esse é um dos filmes que mais fez plateias chorarem na história. Até a filha de Walt, Diane, reclamou com o pai por ele não ter mudado essa parte da história, já que ele tinha poder para isso e já tinha alterado enredos para seus filmes. Mas Walt preferiu seguir o livro, acreditando que era importante mostrar as eventuais perdas e dificuldades durante o amadurecimento. E pensando assim, ele seguiu o melhor caminho para a história. 


Num raro momento de emoção na frente dos empregados, Walt disse depois de uma exibição do filme ainda em produção, às lágrimas: "Obrigado, amigos, essas personalidades são puro ouro!"


O desenho da floresta foi inspirado nas paisagens naturais do Leste dos EUA como dos estados de Vermont e Maine


HIATO DA GUERRA (1943-1945)



Para continuar sobrevivendo no contexto da Segunda Guerra, os estúdios Disney investiram principalmente em filmes de propaganda para os EUA e aliados, como foram o documentário A Vitória pela Força Aérea e o curta A Face de Führer, os dois lançados em 1943. Até o final da guerra, em 1945, o estúdio ficou parcialmente fechado ou em atividade reduzida. Algumas partes do complexo de Burbank serviram de base militar também.


Depois de ver o filme (a pedido de Winston Churchill), o então presidente Franklin D. Roosevelt finalmente se comprometeu com uma campanha aérea estratégica completa contra a Alemanha. O filme ilustra a história da aviação (cita Santos Dumont, mesmo que brevemente) e sua importância para os esforços de guerra, começando com animação cativante e terminando em pessimismo realista não característico da Disney


O curta antinazismo ganhou um Oscar de Melhor Curta Animado em 1943


Um raro momento fotografado de sessão de dublagem com Walt (dublando Mickey) e Clarence Nash, o dublador original do Pato Donald. Anos 1940

GREMLINS: O projeto que só ficou no papel (1943) 


A Segunda Guerra proporcionou um encontro criativo de Walt com o escritor Roald Dahl, autor de livros infantis famosos como A Fantástica Fábrica de Chocolate, James e o Pêssego Gigante e Matilda


Na história de Dahl, os gremlins são criaturas mitológicas travessas que sabotam os aviões da Força Aérea britânica como revanche por terem tido sua floresta natal destruída para a construção de uma base aérea. Durante o conflito da Segunda Guerra, os gremlins são convencidos a unirem forças para combater os nazistas e Hitler. Ao invés de destruir os aviões, eles passam a consertá-los. 


Em seu livro de memórias Lucky Break de 1978, Dahl escreveu sobre a experiência: “Todos os dias, eu trabalhava com o grande Walt Disney em seus estúdios em Burbank, traçando o enredo para o próximo filme. Eu me diverti muito. Eu ainda tinha apenas 26 anos. Participei de conferências de histórias no enorme escritório de Disney, onde cada palavra falada, cada sugestão feita, era anotada por uma estenógrafa e datilografada depois. Andei pelas salas onde trabalhavam os animadores talentosos e briguentos, os homens que já haviam criado Branca de Neve, Dumbo, Bambi e outros filmes maravilhosos. Quando meu tempo livre acabou, voltei para Washington e deixei com eles o projeto.


O livro Gremlins foi publicado em janeiro de 1943; foi o primeiro livro publicado de Roald. Mas apesar do entusiasmo de Walt com o projeto, a ideia do filme terminou misteriosamente engavetada. Provavelmente por desinteresse dos distribuidores, orçamento reduzido e dificuldades na época para animar os gremlins de forma satisfatória. 


A produção de Steven Spielberg nos anos 80 foi levemente baseada nos Gremlins de Dahl, mas foi uma criação bem diferente


DESTINO: O encontro inusitado de Disney e Salvador Dalí (1946, só lançado em 2003)


Os dois artistas reunidos em 1959, na residência de Dalí, em Port Lligat na Espanha

Disney podia ser conservador e quadrado na sua vida pessoal, mas estava sempre querendo inovar e fazer diferente nas suas criações. Ele manteve correspondência com Salvador Dalí, artista espanhol surrealista que também tinha admiração pelo trabalho de Walt e seu estúdio de animação. Dessa amizade improvável nasceu a ideia de um trabalho em conjunto entre duas das mentes mais criativas do século XX, nos idos de 1945 e 1946. 


Os storyboards originais foram idealizados por Dalí e pelo artista do estúdio John Hench


O curta-metragem conta a história do amor malfadado entre Cronos, deus do tempo, e uma mortal chamada Dahlia, que dança pelos cenários surrealistas de Dalí. Para Dalí, era a representação mágica das questões da vida dentro do labirinto do tempo, enquanto para Disney era simplesmente a procura de uma jovem pelo amor verdadeiro

Tristemente, o projeto acabou engavetado (mais por questões orçamentárias, pois a recuperação no pós-guerra foi lenta e gradual) e só seria finalizado mais de 50 anos depois, em 2003, quando o sobrinho de Walt, Roy E. Disney, na época CEO da empresa, resgatou o projeto dos arquivos e enfim, concluído, o curta Destino foi lançado. 


O pequeno filme teve partes em computação gráfica, mas boa parte manteve a animação tradicional idealizada no projeto original


AS COLETÂNEAS ANIMADAS E O INTERLÚDIO DO PÓS-GUERRA (1946-1949)


Em 1946 com o ator e cantor Nelson Eddy nos bastidores do curta Willie: A Baleia Cantora


Nessa época de vacas magras, o estúdio também produziu pequenos filmes educativos, como The Story of Menstruation em 1946 - hoje apesar de datado não deixa de ser uma iniciativa interessante para a época, totalmente inusitada vindo da Disney



As coisas não melhoraram do dia para a noite após o fim da Segunda Guerra Mundial. Só em 1950, com Cinderela, que o estúdio voltaria a fazer um longa-metragem totalmente animado com uma história única. Entre 1946 e 1949, foram produzidos filmes estilo antologia, compostos por dois ou mais segmentos animados curtos. O recurso de misturar live action com animação também foi bastante usado nesse período por ser menos caro do que um filme todo desenhado.


Música, Maestro! (Make Mine Music, 1946), o primeiro filme lançado depois da guerra e por alguma razão obscura o único filme animado da Disney que não está no streaming Disney+


Fun & Fancy Free, o "package film" de 1947 - e o último trabalho oficial de Walt como dublador do Mickey


Melody Time, de 1948 - esses filmes de antologia, mesmo sem muita coesão e orçamentos modestos, ainda tinham momentos de inspiração e criatividade


As Aventuras de Ichabod e o Sr. Sapo, de 1949


O POLÊMICO A CANÇÃO DO SUL (1946) 


No quesito polêmica dentro da sua obra, Song of the South é de longe o filme mais controverso de Disney. Em resumo o filme gira em torno da figura do ex-escravo Uncle Remus (vivido por James Baskett), que muito ensina às crianças com suas histórias (essas de autoria do escritor Joel Chandler Harris). Nos moldes de E O Vento Levou..., a história é controversa pelo retrato que faz dos negros como subservientes aos brancos, mesmo já não mais escravos aqui no contexto do filme (pós-guerra civil). Também tem o uso de dialeto racista e falas problemáticas até mesmo na boca dos personagens animados. E não é motivo de polêmica só hoje: até na época de sua produção e lançamento, houve críticas e reações negativas ao filme. Walt Disney não quis saber e levou o projeto até o fim, e gostava dele - como já não fazia mais tanto, esteve pessoalmente envolvido com o longa. Como já falamos, Walt não era pessoalmente racista mas inconscientemente reproduzia ideias estereotipadas e preconceituosas. 
O apelido de "Tio Walt" já estava pegando nessa época


A grande questão é que qualquer tipo de obra antiga deve permanecer disponível e debatida. A solução não é simplesmente jogar no esquecimento e fingir que nunca existiu. Por isso, acredito que a obra deveria ser relançada pelo estúdio e ter discussões sobre seu conteúdo, e avisos no streaming como tem E o Vento Levou.... (filme incrível, clássico incontestável que ultrapassa o seu conteúdo problemático). Como poderiam retratar o Sul americano sem o racismo da época naquela região (que ainda existe, infelizmente)? De forma menos pejorativa, talvez, mas ainda assim, não dá para apagar a História e suas nuances obscuras. E de qualquer forma, racistas ou não, os sulistas são pessoas com qualidades e defeitos, como quaisquer outras pessoas. Suas estruturas sociais antigas eram equivocadas, mas aquela era a realidade deles e temos que entender isso através do contexto. Personalidades afro-americanas como a diva Whoopi Goldberg defendem que o filme deve ser trazido de volta. Ela disse:
"Estou tentando encontrar uma maneira de fazer com que as pessoas comecem a trazer Song of the South de volta, para que a gente passa conversar sobre o que foi, de onde veio e por que foi lançado."


O coelho Brer Rabbit em cena com Tio Remus. A música Zip-a-Dee-Doo-Dah venceu o prêmio de Melhor Canção Original e já foi gravada por nomes que vão desde Frank Sinatra até Miley Cyrus... E desde então a excelência da animação com live-action é muito elogiada por críticos, estudiosos  e espectadores 


Racismo e depreciação à parte, James Baskett foi agraciado com um Oscar Honorário em 1948 pelo seu trabalho em A Canção do Sul, tornando-o o primeiro ator negro a vencer o prêmio (mesmo que fora das categorias competitivas) - o primeiro ator negro a vencer pela categoria Melhor Ator seria Sidney Poitier em 1964.  Walt Disney pessoalmente fez uma campanha forte para Baskett ser premiado, e no fim conseguiu. Pouco tempo depois da premiação, James faleceu naquele mesmo ano de 1948 por complicações do diabetes, aos 44 anos. 

No clímax do filme, Johnny (doente de cama) e Tio Remus (única pessoa que o garoto queria ver) se dão as mãos, num gesto comovente e ousado para a época (ainda muito racista)



SO DEAR TO MY HEART (1948)



Meu Querido Carneirinho foi um filme menor, mas muito querido por Disney por ser uma história singela passada no mesmo interior rural americano no qual Walt cresceu. A ideia era fazer um filme inteiro em live action, mas os distribuidores não viram potencial e sugeriram sequências animadas para embalar a produção, e assim foi feito. No entanto, apesar do entusiasmo pessoal de Walt, o filme não fez muito sucesso e permanece no baixo clero das produções Disney. Também não está disponível ainda no Disney+, mas não é difícil de encontrar para comprar ou assistir, nem chega a ser polêmico ou evitado como A Canção do Sul




TRUE LIFE ADVENTURES: PIONEIRISMO NOS DOCUMENTÁRIOS DE NATUREZA (1948-1960)


Sem ver muito futuro lucrativo, mas com real interesse pessoal, Walt ficou fascinado com filmagens da vida selvagem em uma ilha do Alaska. Esse pequeno projeto virou um minidocumentário animal e ganhou o nome de Seal Island (Ilha das Focas). Hoje, esses pequenos filmes parecem awkward e com sequências fabricadas, segundo biólogos especialistas, mas com certeza a iniciativa do projeto abriu portas para um nicho de entretenimento sobre a vida animal que hoje em dia continua sendo extremamente popular. 

Superando as expectativas da Disney e dos distribuidores, Seal Island venceu o Oscar de Melhor Curta de 1949 e foi o primeiro de uma série de filmes documentais sobre a vida animal


COMPETIÇÃO NOS DESENHOS: FLEISCHER, MGM, WARNER E OUTROS



A animação vintage não se resumia apenas a Disney. Até meados da década de 1940, o maior rival da Disney no mercado de animação era o estúdio Fleischer. Chefiado pelos irmãos Max e Dave, os personagens mais famosos do estúdio eram a Betty Boop, o palhaço Koko, o marinheiro Popeye, o cachorro Bimbo e até mesmo o Super-Homem. Ao contrário de Disney que focava em animais antropomorfos em cenários fantasiosos, os irmãos Fleischer tinham uma abordagem mais urbana, maliciosa e ao mesmo tempo sofisticada em suas animações, contendo até mesmo teor adulto e sexual, algo impensável na Disney.  Mas em 1942, após boicote da Paramount (seus distribuidores), os estúdios Fleischer fecharam. A Paramount continuou fazendo animações com uma nova empresa, a Famous Studios, que durou até os anos 60 e lançou personagens como Luluzinha e Gasparzinho. 
Atualmente, Fleischer Studios ainda funcionam como empresa que detém os direitos dos personagens como a Betty Boop e administram produtos e publicidade relacionados com os personagens famosos da antiga empresa de animação.

Disney e Max Fleischer (centro) eram rivais nos anos 30, mas nos anos 50 os ânimos abrandaram e os dois viraram amigos. Walt convidou o filho de Max, Richard (direita), para dirigir 20.000 Léguas Submarinas


A Disney não era a única empresa de desenhos bem-sucedida no mercado cinematográfico da época. Nos anos 40 e 50 os seus maiores concorrentes foram a MGM com Tom e Jerry e A Pantera Cor-de-Rosa, a Warner com os Looney Tunes e Merrie Melodies, a Columbia com Mr. Magoo, e a Universal com o Pica-Pau. Com o surgimento da televisão, as animações curtas foram migrando para o novo formato de entretenimento. 


A série original Tom & Jerry durou de 1940 até 1967, fechando com 162 episódios e sete vitórias de melhor curta de animação no Oscar. Seus criadores, William Hanna e Joseph Barbera, depois fundaram o próprio estúdio (Hanna-Barbera) de animação e se consagraram no ramo de desenhos animados com clássicos como Os Flinstones, Os Jetsons, Scooby Doo, entre vários outros 


Looney Tunes, a série animada mais popular nos anos 40, 50 e 60 dos cinemas,  teve seu nome baseado nas Silly Symphonies de Walt Disney. Diferente da ostensiva e fofinha Disney, na Warner (sob direção de Chuck Jones e Tex Avery, e com o talento de dublagem do ícone Mel Blanc) os desenhos eram escrachados e de orçamento bem menor, mas muito engraçados e de enorme apelo popular, sem as afetações que a Disney podia ter. Assim como Tom e Jerry, os desenhos da Warner tinham bastante violência, humor negro e ação pastelão. Looney Tunes venceu cinco vezes o Oscar de Melhor Curta de Animação


Walter Lantz, o criador do Pica-Pau, que foi o primeiro desenho exibido na televisão brasileira, um dia após a sua inauguração, no dia 19 de setembro de 1950 na Tv Tupi


ANOS 50: TRENS, TELEVISÃO, LIVE ACTION, DISNEYLAND E INÍCIO DA "ERA DE PRATA"


A partir dos anos 50 Disney incorporou publicamente de vez o estilo formal e arrumadinho de empresário. O símbolo de sua gravata é o emblema de seu rancho Smoke Tree Ranch


Pode parecer estranho, mas Walt Disney estava se distanciando cada vez mais das animações. 

Por quê? Muitas são as possíveis causas desse gradual desencanto com os desenhos. A greve no estúdio e os anos sombrios da Guerra deixaram marcas profundas nele e nos trabalhadores. Os tempos de fraternidade na Hyperion estavam já distantes, e a atmosfera em Burbank era cada vez mais formal e impessoal. Há tempos que Walt não desenhava mais ou se envolvia com cada detalhe dos filmes. 


Um de seus refúgios favoritos, além de sua casa, era o rancho que tinha em Palm Springs

Por outro lado, ele já se sentia no topo do mercado da animação, tendo alcançado resultados extraordinários, e como uma criança que se cansa de um brinquedo gasto ou de uma brincadeira velha, ele estava à procura de um novo desafio. Para esquecer os problemas do estúdio, Walt redescobriu uma de suas paixões de criança: os trens. Ele passava horas, noites em claro sozinho construindo o seu trenzinho de brinquedo.


Com as suas filhas e o trem Lilly Belle

Em 1949, Disney e sua família se mudaram para uma nova casa em Holmby Hills, Los Angeles. Com a ajuda de seus amigos Ward e Betty Kimball, que já tinham sua própria ferrovia no quintal, Walt imediatamente começou a trabalhar na criação de um trenzinho a vapor em miniatura para o seu quintal. O nome da ferrovia, Carolwood Pacific Railroad, veio da localização de sua casa na rua Carolwood Drive. A locomotiva a vapor em miniatura foi construída pelo engenheiro do estúdio Roger E. Broggie, e Walt a batizou de "Lilly Belle" em homenagem a sua esposa Lillian. 

Lilly Belle em exposição



Rota do trem do Tio Walt



Vários amigos e famosos da época embarcaram no trenzinho de Disney, como o ator Kirk Douglas, a colunista fofoqueira Hedda Hopper e o artista Salvador Dalí. Era uma sensação do momento andar no trem da casa de Walt Disney. Mas após uns três anos, ele acabou desativando a mini ferrovia devido a uma série de acidentes envolvendo seus convidados. Depois o trem foi para exposição na Disneyland e hoje se encontra no museu Walt Disney Family em São Francisco. 

Com Ward Kimball, animador que ajudou Disney a idealizar e construir o trem de sua casa


A nova casa dos Disney era espaçosa e confortável, mas não era luxuosa nem ostensiva. Sim, Walt era acusado de ser cafona, o que em parte é verdade, mas ele nunca foi de luxos excêntricos, por mais rico que tivesse se tornado. Talvez o trenzinho do quintal fosse a maior extravagância da residência mesmo. E esse era um prelúdio dos projetos para a Disneylândia.

O trenzinho do quintal depois serviu de inspiração para a locomotiva C. K. Holliday da Disneyland


Mas voltando para os desenhos... 





CINDERELA (1950)


Desde Branca de Neve, 13 anos antes, que a Disney não investia pesado em um conto de fadas com protagonista mulher, e desde Bambi em 1942 que o estúdio não fazia um longa-metragem inteiramente animado 


A empresa conteve como pôde os custos dessa nova produção, baseada no conto de fadas de Charles Perrault. 90 por cento do filme foi desenhado a partir de modelos de ação ao vivo, segundo um dos desenhistas da animação, Dowel Iaryn. Helene Stanley foi a modelo de Cinderela em live-action, enquanto Ilene Woods deu a voz para a personagem. A trilha sonora do filme recebeu tratamento quase igual ao de um filme live action - uma tendência dos novos tempos, deixando de lado o caricato estilo "Mickey Mouse" de sincronizar ação com música. 
Por outro lado, a animação dos desenhos Disney passou a seguir um estilo clássico e conservador. O estúdio tristemente deixou a experimentação e o abstrato dos anos 30 e 40 para trás... 

Ilustração da diretora de arte Mary Blair para o filme. O estilo de Blair definiu boa parte das animações dos anos 50 no estúdio nas questões de cenário, fotografia, paleta de cores e atmosfera das sequências 


Cinderela poderia ter sido melhor em alguns aspectos da adaptação. Os ratos e animais acabam roubando a cena da protagonista... Um dos roteiros iniciais colocava Cinderela como mais assertiva, reagindo à tirania da madrasta e irmãs, mas infelizmente descartaram essa linha de condução. Mesmo assim, a heroína é cativante, graciosa e encantadora, e com a ajuda de seus amigos, de sua imaginação e de confiança em si mesma é que ela consegue mudar o seu destino. O próprio Walt começou de baixo, contando apenas com os seus sonhos para realizar as suas aspirações. 

Temos que lembrar que nesse contexto antigo, aquela família ruim era tudo o que a Cinderela tinha na vida solitária dela. Ela é uma pessoa boa e gentil por natureza, não levava a sério a amargura da madrasta e antipatia das meias-irmãs, e queria apenas ter um dia bonito no baile (que sem saber mudaria sua vida para sempre), fez o que pôde para realizar esse desejo e por fim quis guardá-lo para sempre, mesmo que não desse em mais nada depois. E enfim, ela tem a coragem de abraçar a possibilidade de uma vida melhor com o homem que ama no clímax final - muito bem conduzido, por sinal, pois apesar de sabermos como vai terminar, o suspense se mantém até o último minuto!

Tanto Cinderela como Branca de Neve sobreviveram a abusos e provações, mas continuaram pessoas doces e generosas, nunca deixando de sonhar e acreditar - o que não deixa de ser uma forma de resistência.



Quando perguntado sobre qual era sua cena animada favorita, Walt disse que era o momento no qual Cinderela ganha o seu vestido de baile (animação do artista Marc Davis)


Para a alegria da Disney, Cinderela fez bastante sucesso em 1950. Foi a maior bilheteria desde Branca de Neve, e com os milhões em lucros a Disney conseguiu não apenas sair do vermelho, mas pôde alçar novos voos: abriram a própria companhia de distribuição, entraram no mercado da televisão e começaram os trabalhos para o parque temático. 

Nessa época Disney estava mais ocupado com os seus trens, com a TV, e também concentrado na nova aposta do estúdio: filmes inteiramente live-action com atores e cenários reais. 

A ILHA DO TESOURO (1950), o primeiro 100% live action da Disney. Com o sucesso deste, o estúdio passou a investir no live-action tanto quanto nos desenhos 



Walt brincando com Kirk Douglas nos bastidores de outro sucesso live-action do estúdio nos anos 50, 20.000 Léguas Submarinas (1954)



ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1951) 

Esse pôster aposta na ideia psicodélica do filme, um espetáculo imperfeito de exuberância, brilhantismo e ingenuidade - belíssimas cores pela artista Mary Blair

Disney foi sensato em apostar na doce Cinderela primeiro, pois ele já sabia que os personagens de Alice e Peter Pan eram mais "frios" e excêntricos. Mas já era hora das duas histórias irem para as telas, pois estavam há anos em stand by.

Desde a série de filmes mudos com Alice que a história de Lewis Carroll fascinava Disney. Até os anos 50, o estúdio cogitou diversas possibilidades para a produção. Inicialmente, seria uma mistura de live-action com desenho, e atrizes como Mary Pickford, Ginger Rogers e Margaret O'Brien foram cogitadas para o papel principal. Para o roteiro, até o escritor Aldous Huxley (de Admirável mundo novo) chegou a ser contratado para uma reescrita do roteiro. Mas Disney achou melhor fazer um longa todo animado, com o fim de ser mais fiel ao livro, mais lúdico e menos literal. No entanto, durante a produção muitas sequências do livro foram descartadas ou reformuladas por um questão de ritmo ou para se adequar ao "padrão Disney de qualidade". 


Kathryn Beaumont serviu de modelo real para a personagem, e também deu a voz para Alice - arte de Marc Davis


Foi uma decepção de crítica e público na época de seu lançamento. Walt achou que "faltou emoção" ao filme, outros animadores sentiram que faltou mais equilíbrio e melhor continuidade entre as sequências - o que aconteceu foi que cada animador responsável por um episódio do filme quis superar o outro na maluquice e excentricidade, tornando o resultado final super saturado. O fato é  que se tornou uma salada mista animada digna de uma viagem de LSD. Com o passar do tempo, Alice virou cult, ganhou mais público e reconhecimento, mas ainda permanece como um dos clássicos menos cultuados da Disney.


PETER PAN (1953)


O teor racista com os personagens indígenas fez o filme ter restrições na plataforma Disney+

Peter Pan, por sua vez, fez um sucesso considerável, mas também teve críticas mistas. Assim como Alice, era um projeto que se arrastou por anos até enfim sair do papel. As fontes divergem sobre o que Walt achou do resultado: umas dizem que ele ficou satisfeito, outras que ele esperava mais da animação. Anyway, sempre foi uma história querida por Walt, já que ele mesmo era um garoto que se recusava a crescer. 


Bobby Driscoll e Kathryn Beaumont foram as vozes e os modelos para Peter Pan e Wendy Darling (o professor de dança Roland Dupree também serviu de modelo de Peter nas cenas de ação). As atrizes Jean Arthur e Mary Martin, intérpretes do personagem na Broadway, foram cogitadas para o filme. Cary Grant também foi cogitado por Disney para dublar o Capitão Gancho, mas no fim o trabalho ficou com o ator Hans Conried


Disney já não estava tão presente nos detalhes das animações (ainda que sempre estivesse nas reuniões e a palavra final fosse sempre a sua). Ele confiava cada vez mais nos seus "nove anciões" - os nove animadores mais emblemáticos da era dourada dos desenhos Disney que citamos lá em cima. Peter foi o último trabalho em conjunto dos nove artistas.


Bobby Driscoll teve muitas dificuldades para manter a carreira depois de seu auge na Disney. Já adolescente, as ofertas de trabalho diminuíram. Bobby acabou nas drogas e faleceu falido e enterrado como indigente aos 31 anos, em 1968



Peter Pan foi o último filme da Disney distribuído pela RKO. Depois, Walt finalmente conseguiu fundar a sua própria empresa de distribuição, a Walt Disney Studios Motion Pictures, não mais dependendo de terceiros para distribuir as suas produções. A Disney, após anos de crise, estava crescendo mais e mais...


TELEVISÃO



Walt foi um dos únicos magnatas de estúdio em seu tempo a enxergar a TV como um meio promissor, e não como um inimigo. Foi graças ao sucesso de seus investimentos na televisão que Walt conseguiu financiar a Disneyland e fazer a sua empresa crescer mais ainda. 

Seguindo o fluxo do momento, as animações começaram a migrar para a televisão

Com o sucesso de um especial de Natal sobre Alice no País das Maravilhas em 1950, a empresa decidiu criar mais conteúdo televisivo. Os primeiros programas Disney no canal ABC foram: Walt Disney's Disneyland, com desenhos e atrações live-action variadas ; Clube do Mickey, o primeiro show de TV diário do estúdio; e a minissérie patriótica de sucesso Davy Crockett, que se tornou tão popular com sua trilha sonora que a Disney fundou sua primeira distribuidora musical, a Disneyland Records. 

As aparições de Walt na TV o tornaram mais famoso do que já era. Antes, o seu nome era mais popular do que a sua imagem em si. Com o advento da televisão o país inteiro o assistia, e assim ele se tornou uma instituição nacional. Com o seu carisma e dom de entreter o público, era o avô ou tio que todos queriam ter. 



O Clube do Mickey na época de sua primeira temporada, 1955. Foi um programa de variedades infantil muito popular com o público jovem da época (só faltou um pouco de diversidade no perfil desse casting, mas okay Lol)


AMIZADE E PARCERIA COM HERBERT RICHERS - você sabia?

Herbert Richers, produtor de cinema e fundador do icônico estúdio de dublagem brasileira, contou com o apoio e amizade de Tio Walt 



Tudo começou nos anos 40, quando Disney estava de novo no Brasil (entre 1944 e 1946) juntando material para um novo filme sobre o Brasil (que acabou não se realizando). Herbert Richers era de Araraquara, interior de São Paulo, e havia se mudado para o Rio nos anos 1940 para estudar engenharia. Procurando complementar sua renda, Herbert começou a trabalhar como fotógrafo em um estúdio de cinema. Sua habilidade com a câmera e o conhecimento de inglês o aproximaram da equipe de filmagem de Walt Disney, que o contratou como cinegrafista. A amizade com Walt rendeu muitas visitas de Richers ao estúdio Disney em Los Angeles. Walt incentivou Herbert a virar produtor de cinema no Brasil, e em uma das visitas do brasileiro aos EUA em 1959, Disney propôs que Herbert Richers fosse o responsável pelas dublagens de suas produções na TV brasileira. 

A série Disney do herói mascarado Zorro foi a primeira produção Disney a ter sua "versão brasileira Herbert Richers" em 1960


A parceria deu super certo e impulsionou a Herbert Richers S.A., que em poucos anos conseguiu monopolizar o mercado de dublagem nacional.  Em 1962 o então presidente Jânio Quadros assinou um decreto que obrigava todos os filmes da televisão a serem dublados. A partir daí a dublagem brasileira realmente começou a emplacar, sendo a Herbert Richers responsável pela dublagem de 80% do mercado nacional no seu auge. Quando a profissão de dublador foi regulamentada em 1978, a Herbert Richers tinha mais trabalhadores na sua folha de pagamento do que a Rede Globo. 

Mas com a flexibilização das regras trabalhistas para a classe e aumento da concorrência nos anos 2000, a empresa começou a entrar em declínio. Somaram-se dívidas, excesso de trabalhadores e eventuais rescisões em massa, atrasos de salário e processos judiciais. Depois da morte de Herbert em 2009, a empresa fechou oficialmente as suas portas, marcando assim o fim de uma era na dublagem brasileira. 

Em 2012, além de sofrer um incêndio, o antigo prédio foi a leilão judicial para quitar as dívidas da empresa extinta (e o acervo doado). Hoje o endereço, no bairro da Tijuca no Rio, abriga um templo espiritualista  japonês  


DISNEYLAND (inaugurada em 17 de julho de 1955)

O parque de diversões Tivoli Gardens, em Copenhage na Dinamarca, inspirou muito Disney pela limpeza e seu belo design 


Novamente, era um projeto ambicioso que nem todo mundo botou muita fé logo de início. Mas a nova loucura Disney foi aos poucos tomando forma; a eloquência de Walt em apresentar os seus projetos visionários conseguia conquistar a todos. 

Apresentando os primeiros esboços do parque. Ele teve a ideia ao levar as suas filhas para um parque comum nos anos 50. Ali ele começou a pensar em um parque temático diferente, limpo, que pudesse entreter a família inteira com diversão de qualidade



A WED Enterprises, responsável pelos parques temáticos,  se tornou um ambiente criativo mais estimulante para Walt do que o estúdio dos filmes. Hoje a empresa se chama Walt Disney Imagineering


Uma confusão muito comum é pensar que a única Disney americana fica em Orlando na Flórida, isto é, o Walt Disney World. Mas o primeiro parque temático da Disney, idealizado por Walt Disney em vida, é a Disneyland que fica em Anaheim, região metropolitana de Los Angeles, Califórnia. O parque da Flórida, apesar de uma ideia original de Walt,  só foi inaugurado em 1971, cinco anos após a sua morte.


Burbank não tinha espaço para a proporção do projeto,  então Disney optou pelo Orange County (na região de Anaheim, Califórnia) 


Em meados de 1954, Disney enviou seus "imagineers" a todos os parques de diversões dos EUA para analisar o que funcionava e quais armadilhas ou problemas havia nos vários locais e incorporou suas descobertas ao projeto. O trabalho de construção começou em julho de 1954 e a Disneyland foi inaugurada em julho de 1955, um ano depois.


A cerimônia de abertura foi transmitida pela ABC, atingindo a marca de 70 milhões de telespectadores. Walt não conseguia esconder a sua emoção

 O parque foi projetado como uma série de divisões temáticas, ligadas por uma rua principal, a Main Street, U.S.A.‍—‌uma réplica da rua principal em sua cidade natal, Marceline (mas quase todas as cidades americanas têm uma "main street"). Enfim, as áreas temáticas conectadas foram Adventureland, Frontierland, Fantasyland e Tomorrowland. O parque também continha a ferrovia Disneyland que ligava as áreas; ao redor do parque havia uma inclinação alta para separar o parque do mundo exterior. Um editorial do The New York Times considerou que a Disney "combinou com bom gosto algumas das coisas agradáveis ​​de ontem com fantasia e sonhos de amanhã".

Os parques Disney, mais do que atrações turísticas e de diversão, são exemplos de excelência em arquitetura e design, mesmo que comumente apontada como um entretenimento  artificial

Embora houvesse pequenos problemas iniciais nas instalações do parque, foi um sucesso. Após um mês de operação, a Disneylândia estava recebendo mais de 20.000 visitantes por dia; ao final de seu primeiro ano, atraiu por volta de 3,6 milhões de visitantes. A partir dali, a Disney deixava de ser apenas um estúdio. Era agora o início de um império. 

Dentro de uma xícara maluca, um de seus brinquedos favoritos. Disney vetou Alfred Hitchcock de filmar no parque nos anos 60, nas palavras do reacionário, por causa "daquele filme nojento Psicose" 


Ele adorava mostrar o parque pessoalmente para as crianças, especialmente para os seus queridos netos (suas filhas Diane e Sharon eventualmente casaram e tiveram filhos)


Ele passaria dias (e noites) checando as atrações do parque e observando tudo de longe (ou misturado com a multidão)


A DAMA E O VAGABUNDO (1955)


A sequência clássica do spaghetti quase foi cortada por Disney, temendo que ficasse boba e nada romântica, mas a animação da cena feita por Frank Thomas o convenceu a mantê-la no filme 


Mesmo imerso em outros projetos fora do estúdio, e claramente mais interessado na Disneyland, Walt não deixou de supervisionar os trabalhos de Lady and the Tramp. A história de amor canino bateu recorde na bilheteria e fez muito sucesso na sua estreia, em 1955. No final da década de 80, também se tornou o videocassete mais vendido de seu tempo. 


Disney colocou alguns elementos da sua vida pessoal no filme. A cena de Lady dentro de uma caixa de chapéu como presente, por exemplo - Walt presenteou sua esposa Lillian da mesma forma nos anos 30, mas ao invés de um Cocker ele deu para a mulher um cão da raça Chow Chow. E mais: os cenários e a cidade do filme foram inspirados na cidade da infância de Walt, Marceline 


A cadela poodle Lady foi um xodó de Walt. Ele gostava mais de cães do que gatos (porque ele, autoritário, não conseguia mandar nos gatos)


As críticas da época do lançamento, no entanto, foram mistas. Uma parte dos críticos achou o filme muito meloso e sentimental (tipo de crítica que a Disney já vinha recebendo), além de supostamente o trabalho dos animadores ter ficado abaixo da média. Talvez não seja o melhor trabalho de animação da época, já que os artistas tiveram que reformular muita coisa para se adaptar à nova tecnologia do CinemaScope (tela widescreen), muito em voga nos anos 50 e 60. 


Foi o primeiro filme animado em CinemaScope e também o primeiro desenho da Disney a ser lançado pela sua nova distribuidora, a Buena Vista. O nome vem da rua onde se encontra o estúdio Disney em Burbank (Buena Vista Street)

A Dama e o Vagabundo está presente no número 95 do Top 100 de maiores histórias de amor do cinema do American Film Institute (AFI).


A cantora Peggy Lee ajudou na composição da trilha sonora, além de ter dado a voz para quatro personagens do filme. Nos anos 80 Peggy processou a vênus platinada Disney por não receber parte justa nos lucros da distribuição filme, e diferente de muitos artistas que ao longo dos anos não conseguiram nada, ela saiu vitoriosa. Depois do episódio, os contratos da Disney com cantores e dubladores  foram reformulados para evitar novos processos


A BELA ADORMECIDA (1959)



As animações do estúdio ainda rendiam bastante, mas por quase toda a década de 50  receberam críticas mistas e pouco entusiasmadas. Disney, em busca de uma aclamação geral do público e da crítica, resolveu apostar novamente na fórmula do conto de fadas clássico, que havia se mostrado bem-sucedida em Branca de Neve e CinderelaSleeping Beauty foi o filme animado mais caro da Disney até aquele momento, custando em torno de 6 milhões de dólares. Um projeto ambicioso na parte visual e artística, mas que não fez muito sucesso como um todo.


Walt dando sugestões em reunião de ideias para o longa-metragem. Consciente de encarnar um personagem para o público, ele disse no privado: "Walt Disney não fuma. Eu fumo. Walt Disney não bebe. Eu bebo." 


Era a primeira animação filmada na tecnologia Technorama 70mm, filmagem usada para espetáculos de grande porte. A perfeição do desenho é de encher os olhos


É capaz que o maior problema seja a condução da história. Os personagens não têm tanto carisma e humor como em Branca de Neve, o que deixou a história arrastada e monótona. A história da Bela Adormecida por si só já é motivo de muita desconstrução nos dias de hoje, e até com razão pois é um dos contos de fadas mais problemáticos. 


Meu autógrafo de Mary Costa, a dubladora original da Princesa Aurora. Costa e Bill Shirley (o príncipe) eram cantores profissionais de ópera, e o tema do filme Once Upon a Dream era uma adaptação do ballet Sleeping Beauty do compositor russo Tchaikovsky


Aurora é uma das protagonistas mais lindas (seu desenho foi inspirado em Audrey Hepburn), mas com menos tempo de cena e também uma das mais apagadas. Um defeito das princesas dessa era é uma certa passividade, algo que felizmente foi sendo melhorado com as protagonistas mais assertivas das décadas seguintes. Mas, como princesas/jovens em contextos medievais de contos de fadas, restritos para as mulheres, acho que cada protagonista tem o seu destino, faz e acontece da sua maneira e por fim amadurece. Elas não precisam de armas e violência para mostrar que são fortes e corajosas à sua maneira. 


A vilã Malévola rouba a cena durante o filme. O filme de Angelina Jolie, querendo ou não, deu mais profundidade para a personagem, algo que faltou no desenho


De certa forma, era o fim de uma era. O próximo conto de fadas da Disney só seria feito quase 30 anos depois, com A Pequena Sereia em 1989. 




REINVENÇÃO NOS ANOS 60: EPCOT, A UTOPIA DO FUTURO E O ADEUS DE WALT


A Disney por muito tempo encobria o fato de Walt ser fumante, chegando ao ponto de usar photoshop em fotos de Walt com cigarro. 101 Dálmatas é um dos poucos desenhos Disney com personagens fumantes

O estúdio entrou nos anos 1960 em crise. A empresa estava de novo no vermelho por conta do desempenho decepcionante de A Bela Adormecida nos cinemas. Que fique claro que Disney nunca levou bilheteria e lucro tão a sério, afinal flops comerciais do passado renasceram nos relançamentos - sua preocupação era mesmo com o futuro do estúdio e com as possibilidades de suas novas ideias. Rumores eram de que o estúdio deveria focar apenas em live-action e TV, e parar de produzir desenhos pois esses eram projetos caros que não estavam mais dando o mesmo retorno de antigamente. 


A queridinha de Walt da década de 60 Hayley Mills. Entre seus filmes mais famosos, estão Pollyanna e Operação Cupido (sim, o filme da Lindsay Lohan é um remake rs). Quando soube da morte de Walt em 1966 ficou chocada mas não triste, pois "ele era maior que a vida". Hayley venceu o último Oscar Juvenil pela sua performance tocante em Pollyanna


Assista aqui a uma entrevista relâmpago que Walt concedeu em Lisboa em 1962, arriscando até umas palavras em português: https://www.youtube.com/watch?v=FbJaU7c6SXw


Por mais que a animação já não significasse para ele o mesmo que antes, Walt se recusou a deixar de fazer desenhos animados. A solução foi produzir um filme animado mais simples e contemporâneo. 


101 DÁLMATAS (1961)


A base da história vem do livro infantil da escritora britânica Dodie Smith, que diferente da maioria dos escritores, ficou muito satisfeita com a adaptação de Disney

O triunfo de 101 Dálmatas salvou o setor de animação da Disney, mas iniciou um período de animação mais básico, estilo xerox imperfeito, que duraria até o fim dos anos 80. Mas com a supervisão de Walt até sua morte em 1966, os filmes Disney ainda contaram com o seu toque mágico. Ele disse, porém, que em Dálmatas pouco tinha a acrescentar, pois o roteiro de Bill Peet para o longa era "perfeito". E realmente, o filme consegue dosar comédia, drama e aventura maravilhosamente bem. 


Os cineastas escolheram atores com vozes mais graves pros cachorros, para dar mais intensidade a eles em comparação com os humanos. Rod Taylor, ator de Os Pássaros e A Máquina do Tempo, deu voz ao cachorro Pongo


A vilã Cruella De Vil é o ingrediente especial do desenho. Aqui temos uma antagonista que não é nenhuma bruxa ou coisa do tipo, ela é simplesmente uma mulher má e excêntrica. Para desenhá-la, os animadores pensaram em Tallulah Bankhead, Bette Davis e Rosalind Russell. A dubladora original de Cruella, Betty Lou Gerson, era sulista do estado do Alabama que nem Tallulah, o que ajudou a compôr uma mistura única de sotaque britânico com sulista americano


A animação estilo fotocópia possibilitou um trabalho mais barato para desenhar, colorir e dar vida a tantos filhotes de dálmatas. O filme tem mais de 6 milhões de pintas pretas no total. Ao invés de branco, os cães foram pintados com cinza claro para fotografar melhor 


Apesar do sucesso, Walt Disney não ficou satisfeito com a animação do filme. Para ele, o visual não tinha a fantasia de seus filmes da era dourada. Só pouco tempo antes de morrer, em 1966, Walt pareceu ter "perdoado" o animador dos Dálmatas, Ken Anderson, que disse: 


"Ele parecia muito doente. Eu disse: "Puxa, é ótimo ver você, Walt", e ele disse: "Sabe aquela coisa que você fez nos Dálmatas". Ele não disse mais nada, mas apenas me deu esse olhar, e eu sabia que tudo estava perdoado e, na opinião dele, talvez o que eu fiz com os Dálmatas não tenha sido tão ruim. Aquela foi a última vez que eu o vi. Então, algumas semanas depois, eu soube que ele tinha partido."


A ESPADA ERA A LEI (The Sword in the Stone, 1963) foi o último longa-metragem animado lançado por Walt Disney em vida. Boatos de que o bruxo genioso e ranzinza Merlin foi inspirado no próprio Walt


MARY POPPINS (1964), sua obra definitiva


Julie Andrews e Dick Van Dyke interagem com as animações. Foi o filme mais lucrativo da Disney na época e o único filme do estúdio indicado para o Oscar de Melhor Filme durante a vida de Walt



Foto promocional do filme com Walt 


Mary Poppins é considerado, junto com Branca de Neve, o maior triunfo da carreira de Walt. Como já não fazia há tempos, ele fez questão de supervisionar cada detalhe da produção. Foi um longo caminho até as filmagens... Disney tentava entrar em um acordo com a escritora P. L. Travers desde 1938, e muita água rolou debaixo da ponte até enfim a autora permitir a produção do filme em 1961. A relação difícil entre Disney e Travers foi retratada no filme Saving Mr. Banks em 2013, com Emma Thompson no papel de Travers e Tom Hanks como Walt Disney (Hanks, by the way, na vida real é um primo distante de Disney).


A trilha sonora feita pelos Sherman Brothers (responsáveis por diversos soundtracks Disney) foi e é até hoje muito aclamada. A música "Feed the Birds" em especial era uma favorita de Walt, que sempre se emocionava ao escutá-la. Até a escritora exigente P. L. Travers se rendeu à beleza da música

Diferenças à parte, Disney foi muito feliz com esse filme e manteve a mágica da história original à sua maneira. Julie Andrews fez a sua estreia no cinema de maneira triunfal, logo em seguida vencendo o Oscar de Melhor Atriz no ano seguinte. No seu discurso Andrews agradeceu com ironia a Jack Warner, que havia trocado Julie por Audrey Hepburn para o filme My Fair Lady. Julie fez My Fair Lady nos teatros com sucesso, mas Warner não quis apostar em uma novata para o cinema, diferente de Walt que até esperou que Andrews (grávida na época da pré-produção) tivesse sua filha antes de começar as gravações. 


Com Julie Andrews nos bastidores. Audrey Hepburn, por ironia, chegou a ser cogitada para o papel de Poppins, e Cary Grant para o papel do cockney Bert

Em vida Walt ainda produziu as primeiras animações do Ursinho Pooh do estúdio. Recebeu um Oscar póstumo de Melhor Curta Animado

EPCOT, a utopia de Disney


Desenho da comunidade futurista que Walt tinha em mente, por Herbert Ryman 


Em 1959 começaram as ideias para um novo parque Disney. Pesquisas apontavam que apenas 5% dos visitantes da Disneyland vinham da Costa Leste (Nova York e cia), onde se concentrava a maior parte da população do país. Walt tinha interesse em uma área maior e com maior autonomia para o novo parque temático. No fim de 1963, ele sobrevoou a região de Orlando, Flórida, e se interessou muito pelas terras. As negociações começaram, mas Disney manteve sigilo absoluto até meados de 1965 sobre o seu novo parque: Disney World. 

Desenho conceitual de EPCOT por Herb Ryman

Mais do que um parque, este seria ainda mais grandioso, com campos de golfe, hotéis resorts, e principalmente no centro de tudo, uma utópica cidade futurística com suas próprias regras e leis. Esse projeto ficou conhecido como EPCOT, Experimental Propotype Community of Tomorrow, traduzindo do inglês: "Protótipo Experimental da Comunidade do Amanhã". 

"Uma comunidade de protótipos experimentais do amanhã que se inspirará nas novas ideias e novas tecnologias que estão surgindo agora dos centros criativos da indústria americana. Será uma comunidade do amanhã que nunca será concluída, mas vai sempre apresentar, testar e demonstrar novos materiais e sistemas. EPCOT sempre será uma vitrine para o mundo da engenhosidade e imaginação da livre iniciativa americana"


Por dentro um garoto cheio de ideias e imaginação, mas por fora já mostrava sinais da idade. Cada vez mais conservador, ele incentivou os empregados a financiarem a campanha eleitoral de Nixon (Ward Kimball, desenhista próximo de Walt, se recusou e os dois discutiram)


EPCOT não seria o parque temático que conhecemos hoje, mas uma cidade inacabada do futuro. Talvez já sentindo que não viveria por muito mais tempo, Walt havia decidido deixar seu legado para o futuro, nessa que era a sua ideia mais ambiciosa e futurista. 

Sua visão original era de uma cidade planejada que seria o lar de 12 mil habitantes. EPCOT seria construída em formato de círculo, com áreas empresariais e comerciais em seu centro, com edifícios comunitários, escolas e complexos recreativos ao redor, enquanto os bairros residenciais ficariam no entorno. O transporte seria fornecido por monotrilhos. O tráfego de veículos seria subterrâneo, deixando os pedestres seguros na superfície. Também haveria um parque industrial e um aeroporto


A ideia é até bonita, mas parece mais uma ilustração futurista de igreja evangélica


Mas a utopia de um pode ser a distopia do outro. Em EPCOT  não seria permitido o desenvolvimento de favelas. Seria um lugar onde os sindicatos seriam proibidos, todas as casas seriam alugadas, todo mundo teria um trabalho (sem aposentadoria ou previdência social), e a cidade teria a sua própria segurança. Esse tipo de conceito agora está ganhando influência tangível em condomínios privados protegidos por suas próprias forças de segurança. Alguns entendidos chegam a comparar o projeto de Disney com ideais totalitários. 


Em 15 de novembro de 1965, ao lado do governador do Estado, foi feito o anúncio oficial da construção da maior atração da história da Flórida


Preferimos não divagar muito sobre o projeto ser possivelmente  fascista ou não, afinal ele nunca saiu do papel no fim das contas. Por um lado, teria sido interessante ver o potencial dessa possível cidade do amanhã, pois Walt realmente tinha ideias interessantes muito à frente de seu tempo apesar de seu conservadorismo pessoal e político. Por outro lado, sua natureza controladora poderia tornar essa cidade uma espécie de distopia. Ele mesmo passou por cima de muitos protocolos, devido a sua influência e prestígio, para construir os seus parques. Hoje em dia se debate muito sobre os bastidores do mundo de purpurina da Disney, que esconde abusos trabalhistas e passa por cima de leis e limites para ampliar seus lucros e atrações. 



Disney algum tempo antes de seu falecimento, conferindo plantas de EPCOT


Walt se mantinha mais ocupado do que nunca em 1966, sem qualquer ideia de possível aposentadoria. Entretanto, em novembro daquele ano ele foi diagnosticado com câncer de pulmão em estágio avançado. Walt iniciou um tratamento, mas já era tarde. Em 30 de novembro ele foi internado no hospital St. Joseph em Burbank, e no dia 15 de dezembro de 1966, dez dias depois de seu aniversário de 65 anos, Walt Disney faleceu, ao lado do seu irmão mais velho Roy, que continuou massageando o irmão e conversando com ele, como se ele ainda estivesse vivo. E de certa forma ainda estava, e está, em outro plano.



No seu quarto no hospital, Walt continuava estudando plantas e ideias para EPCOT. Suas últimas palavras foram "Kurt Russell" escritas em um pedaço de papel. Russell era um astro mirim em ascensão na Disney da época, mas ninguém sabe bem por que Walt escreveu seu nome, nem mesmo o ator. O que se nota é que Disney pensava em trabalho e em seus projetos mesmo no seu leito de morte... 

Contrariando o mito popular, Walt Disney não foi congelado, e sim cremado como um simples mortal. Mas o mito que envolve o jovem que se recusava a crescer, que criou o seu próprio mundo fantástico a partir de um camundongo, esse mito sim nunca deixará de existir. 

O túmulo da família Disney no Forest Lawn Memorial Park, em Glendale, California


MOGLI, O MENINO LOBO (1967) foi o último longa animado produzido por Walt em vida


Walt teve desentendimentos criativos sérios nos bastidores, mas após recusar muitas das músicas da pré-produção, ele aceitou manter a mais famosa,  "Somente o necessário" 

Floyd Norman, o primeiro desenhista negro fixo  do estúdio relembra Walt como um chefe exigente mas estimulante. "Nem uma vez eu observei um indício de comportamento racista do qual Walt Disney foi frequentemente acusado após sua morte. Seu tratamento das pessoas‍—‌e com isso quero dizer todas as pessoas‍—‌só pode ser chamado de exemplar."

Norman também lembrou sobre os últimos momentos de Walt no estúdio em 1966, quando trabalhou perto dele na produção de The Jungle Book

“Nenhum de nós sabia durante a produção do filme que Walt estava doente. Ele trabalhou com o vigor e entusiasmo de sempre. Você nunca pensaria que Walt estava morrendo em 1966. Ele nunca pareceu vacilante ou que sua saúde estava falhando. Nós nunca percebemos. Acho que é por isso que sua morte foi um choque para todos nós. Ele era ranzinza, ele estava sempre mal-humorado – mal, mal-humorado Walt – mas era assim que ele era todos os dias. Nós nunca soubemos de sua doença.”


“Sabíamos que Mogli voltaria para a vila dos homens no terceiro ato, mas não sabíamos como iríamos trazê-lo de volta para lá. Por que ele desiste do sonho de ficar na selva e volta para lá? Bem, um dia Walt diz: 'Ele vê uma garota.' Então, naturalmente, todos nós dizemos: 'Dá um tempo! Ele não tem nem 11 anos, não tem nenhum interesse em garotas.” E Walt disse: “Faça isso. Vai funcionar.” E ele estava certo. Funciona. Você nunca pensa em Mogli sendo uma criança. Ele vê a garota. A garota é sedutora. E ele a segue. Talvez seja apenas curiosidade. Ele nunca tinha visto uma garota antes. É encantador. É fofo, e é o nosso fim. Suas soluções para problemas em filmes às vezes são muito simples. Era uma solução simples que pensávamos ser para um problema complexo. Walt era um excelente editor de histórias. Ele nem sempre resolvia todos os seus problemas para você, mas ele te colocaria na direção certa.”


Seu irmão Roy deu continuidade ao projeto da Flórida. Em homenagem a Walt, o Walt Disney World foi inaugurado na Flórida no 1º de outubro de 1971. Lillian, a viúva de Walt, disse que o marido aprovaria o parque. Roy Disney morreu menos de três meses depois da inauguração, em 20 de dezembro daquele mesmo ano


Inauguração da Disney World (complexo do parque temático chamado Magic Kingdom). Foto da Revista Life


EPCOT foi inaugurado em 1982. Abriga um centro de exposições e atrações voltadas a inovação tecnológica e cultura internacional. Apesar da proposta interessante, ficou bem longe do projeto inicial de Walt Disney


No premiado filme de 2017 Projeto Flórida (título tirado do nome provisório de EPCOT), o diretor segue a realidade cotidiana dos pobres marginalizados que vivem nos arredores do Disney World, desconstruindo a aura de fantasia da região de forma tocante e arrebatadora 


Durante 20 anos, houve esforços para se construir uma Disneyland no Brasil, na região de Guarulhos, São Paulo. Sem nenhuma ligação direta com a Disney, o comediante de sucesso José Vasconcellos investiu quase tudo o que tinha e quase foi à falência pela falta de apoio no projeto. Hoje o terreno permanece abandonado e Vasconcellos esquecido... O mais próximo da Disney que se tem no país é o Beto Carrero World, o maior parque temático da América Latina



EPÍLOGO: O homem das mil e uma faces



DISNEY DEPOIS DE WALT (Anos 70 em diante)


Walt no céu acompanhando as reuniões da sua empresa (desenho do animador Floyd Norman)

A era de bronze (ou para uns a "idade das trevas" da Disney) se deu entre os anos 70 e boa parte dos anos 80. Depois da morte de Walt Disney, o estúdio de animação se viu perdido e sem direção. Os desenhos dessa época foram menos criativos e pouco inspirados. A maior parte deles ficou esquecida com o passar do tempo e poucos deles fizeram sucesso. Nesse período foram produzidos Aristogatas, Robin Hood, As Muitas Aventuras do Ursinho Pooh, Bernardo e Bianca, O Cão e a Raposa, O Caldeirão Mágico, As Peripécias do Ratinho Detetive e Oliver e Sua Turma


Aristogatas foi o último projeto de animação aprovado por Walt Disney antes de morrer. Mesmo fofo e nostálgico, dá pra sentir menos inspiração no longa, com uma história muito simples e de pouca intensidade. Os filmes seguintes, com exceções, ficariam ainda mais abaixo da média


O auge do flop dessa fase foi o fiasco de O Caldeirão Mágico, que quase arruinou o estúdio em 1985. Mas o modesto Ratinho Detetive fez sucesso em 1986, e a vanguarda Disney renasceu com o sucesso do live-action misturado com desenho Uma Cilada para Roger Rabbit em 1988, produzido pela Touchstone Pictures, produtora da Disney.


A Pequena Sereia marcou em 1989 a "Renascença Disney", isto é, um retorno do sucesso e esplendor da animação de histórias clássicas como nos tempos do Tio Walt. Foi o último filme do estúdio a usar animação feita à mão, dando lugar gradualmente para a computação gráfica nos filmes seguintes (com tecnologias desenvolvidas pela Pixar, hoje uma empresa estabelecida em animações de qualidade)


A Bela e a Fera foi o único filme de desenho animado a concorrer na categoria Melhor Filme no Oscar de 1992, um marco da animação. Acredito que esse filme teria agradado muito o Tio Walt [Rei Leão idem] :-)


Menção honrosa para Mulan, a protagonista guerreira que quebrou o estereótipo de princesa Disney em 1998


Depois seguiram-se grandes sucessos como Aladdin, O Rei Leão, Pocahontas, Mulan, Tarzan... E entramos no novo milênio. Gostaria de discorrer mais sobre os filmes em si, curiosidades do estúdio e seus artistas na Nova Era, mas deixo para futuros textos. O que podemos concluir é que a Disney, mesmo consagrada, tem seus altos e baixos e está sempre experimentando e (re)descobrindo formas de fazer animações de qualidade e sucesso. Como Walt sempre dizia, o importante é sempre continuar seguindo adiante... 

Não vou entrar no mérito da Disney atual ser boa ou ruim porque renderia uma longa discussão. Seu monopólio no mercado atual é bem preocupante e muitas de suas atitudes questionáveis. As produções recentes pouco me interessam, como quase tudo no circuito recente do cinema comercial, cada vez mais voltado a dinheiro, efeitos especiais e entretenimento barato. Uma coisa que certamente Walt não gostaria no cenário atual é a falta de criatividade, ousadia e imaginação. Muito do seu sucesso se deu por ousadia, confiança no potencial e muita determinação e trabalho duro.  

Antes de seu falecimento em 2013, Diane Disney conseguiu inaugurar em 2007 um museu em homenagem ao legado de seu pai, o Walt Disney Family Museum, localizado na cidade de San Francisco, Califórnia

POR TRÁS DO MITO, UM HOMEM SIMPLES E COMPLEXO



É incrível como cada pessoa que conviveu com Walt tem uma lembrança única e particular dele, nunca igual a dos outros, seja positiva ou negativa. O que nos resta é juntar cada pedaço para montar o quebra-cabeça.




Amigos e familiares consideravam Disney mais um ingênuo na matéria de política. O que ele queria era defender os valores tradicionais nos quais acreditava, como um homem patriota e empresário capitalista. Sim, Walt Disney serviu alegremente ao capital e ao imperialismo com sua obra. Ele usou seu poder várias vezes para conseguir o que queria e também prejudicou carreiras. Contudo, ele sempre foi uma espécie de outsider em Hollywood, antes e depois do seu sucesso ele lutou muito para pôr suas "loucuras" em prática, quando todos o desacreditavam. E mesmo que seus filmes e parques ainda reforcem utopias ou valores hoje considerados quadrados, a questão é que até hoje essas suas criações trazem alento, esperança e imaginação a milhões de plateias pelo mundo inteiro.




O cineasta russo Sergei Eisenstein (de clássicos soviéticos como O Encouraçado Potemkin) era um admirador fervoroso de Walt Disney. Eisenstein, que era um crítico exigente e perfeccionista em relação a cinema, dizia ficar chocado com a perfeição das animações Disney, chegando a dizer que Branca de Neve era um filme impecável. Essa amizade e admiração entre dois representantes de mundos opostos talvez seja o melhor exemplo de opostos que se atraem e de certa forma se completam. Ainda que consciente do mundo Disney ser um reforço da ideologia do capital e cia, Sergei acreditava que, através das animações, o mesmo representante do sistema que reprime e açoita se redime ao compartilhar com o seu público um mundo de beleza, esperança e fantasia. Escapismo da realidade que o próprio Walt Disney sempre buscou em sua trajetória, criando assim o seu próprio mundo. Um mundo apenas possível em Hollywood, a cidade dos sonhos agridoces e ilusórios, que nós amamos e desprezamos ao mesmo tempo, mas que nunca deixa de nos fascinar. Um mundo apenas possível por conta de sua mente pioneira e visionária e paradoxalmente seu controle de déspota conservador e reacionário. 

As suas contradições não o cancelam, apenas o tornam mais humano e interessante. Analisando suas conquistas como indivíduo, acima de tudo, é impressionante como ele foi tão longe para realizar os seus sonhos e ambições. Sua história de vida inspira muito a superar os fracassos e persistir nos nossos ideais. Como ele dizia: "se você pode sonhar, você pode fazer".


Eisenstein e Disney juntos em 1930

"Este homem parece conhecer não apenas a magia de todos os meios técnicos, mas também os fios mais secretos dos pensamentos, imagens, ideias, sentimentos humanos. Ele cria em algum lugar no reino das profundezas mais puras e primitivas. Lá, onde somos todos filhos da natureza." 
Eisenstein em um livro póstumo inacabado de ensaios chamado On Disney 


Fazendo uma comparação polêmica, será que a atual cultura do cancelamento está tão longe do Macarthismo em termos de boicote? Nunca será justificável a caça às bruxas promovida na metade do século passado, mas qualquer polarização extrema, sob qualquer espectro político, pode reprimir e castrar a nossa individualidade e nossa expressão. Sim, houve progressos no mundo, mais inclusão, e intolerância não é liberdade de expressão. Mas continuamos demonizando, procurando bodes expiatórios e "cancelando" aquilo/aqueles que não vão de encontro com a nossa ideologia, com o que foi estabelecido como politicamente correto. Enfim, deixo a questão no ar e espero que com o tempo nós voltemos a ser mais autênticos, menos escravos de cartilhas, menos juízes dos outros. E que saibamos separar o artista de sua obra e encaixar uma obra dentro de um contexto, quando o assunto é consumo de arte e entretenimento. Isso não é passar pano, é maturidade de pensamento e reflexão. Não existe presente sem passado, muito menos futuro. E só com entendimento, reflexão e aceitação dos erros e acertos do passado é que poderemos construir um futuro mais justo, pacífico e promissor. 




Ame ou odeie, mas Walt Disney fez História e mudou para sempre o cenário cultural do entretenimento, e por que não, da arte. A sociedade evoluiu, o caminho é longo e infinito, mas a contribuição de Walt para o cinema e companhia, apesar de tudo, jamais será esquecida. Acima de seus defeitos e ideias antiquadas, sua mente visionária e seu legado cultural servirão sempre de inspiração para novos artistas e amantes de boas histórias, de todas as idades - eternamente jovens em seus corações e espíritos. 



“O riso é atemporal, a imaginação não tem idade, os sonhos são para sempre.”  



Pedro Dantas

Dezembro de 2021/Janeiro de 2022

BIBLIOGRAFIA

Gabler, Neal (2006). Walt Disney - The Triumph of the American Imagination. New York: Alfred A. Knopf. 

Kothenschulte, Daniel (2016). The Walt Disney Film Archives: The Animated Movies. Publicação: Taschen, Edição Ilustrada. 

Thomas, Bob (1994) [1976]. Walt Disney: An American Original. New York: Disney Editions.

Agradeço aos portais D23.com, Walt Disney Archives, O Camundongo, Walt Disney Family Museum e Oh My Disney pela ajuda na minha pesquisa e por muitas das imagens (vide as marcas d'agua). O documentário Walt: The Man Behind the Myth (2001) também ajudou bastante na produção do texto.


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